Esclerose Múltipla: luto, desafios e aprendizados de uma mulher negra

Psicóloga conta como foi descobrir e lidar com a Esclerose Múltipla em seu cotidiano e relações sociais.

Na manhã de 12 de outubro de 2016, a psicóloga Ester Maria Horta sentiu um desconforto na vista direita. Correu para um Pronto Socorro focado em oftalmologia. Descobriu que não havia nada nas retinas, mas um edema de papila, ligado diretamente ao nervo óptico. No neurologista, entendeu que o sintoma era um alerta para outra doença. Após diversos exames, o diagnóstico foi finalmente encontrado: Esclerose Múltipla (EM).

“Quando recebi o informe de que se tratava de algo neurológico que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido. Ele segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava. Era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar”, conta.

De lá para cá, a psicóloga precisou se reinventar. Entendeu o processo de conviver com uma doença crônica também como um tipo de luto, que exige tempo para entender as mudanças.

“O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde”, explica Ester. “Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física.”

Ela explica que o diagnóstico, apresentado de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surgindo assim o medo da morte e do incerto. “E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico”.

Para quem não sabe, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença que atinge, geralmente, pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo têm EM.

Segundo dados da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), estima-se que, no Brasil, a cada 100 mil habitantes 15 indivíduos vivem com EM, sendo uma média de 35 mil brasileiros com a doença. Uma antiga noção aponta que a doença acomete mais mulheres jovens e brancas, dificultando o diagnóstico e o tratamento de pessoas negras.

“Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme afirma Mitzi Joi Williams, fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta”, diz a psicóloga.

Por ser considerada uma doença heterogênea, os sintomas são variados, a depender da área do sistema nervoso acometida, dificultando um diagnóstico mais rápido. Ester enxerga isso com preocupação, já que falta informação, e o acesso aos exames ainda não é uma realidade para todos os pacientes, principalmente entre negros e pobres. Por isso ela está construindo, em parceria com a também neuropsicóloga Marcela Silva, um projeto de democratização do acesso aos conhecimentos e serviço especializado de neuropsicológica às famílias periféricas.

“Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de Estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada”.

Nesta entrevista para o Morte Sem Tabu, Ester explica o que é a esclerose múltipla e conta sua experiência pessoal de como aprendeu a lidar com a doença e com o luto após descobri-la.

Ester é especialista em Neuropsicologia pela Divisão de Psicologia do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP) há 10 anos. Neuropsicóloga na Baobá Neuropsicologia. Membro do conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, membro da coordenação do Núcleo de São Paulo da ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadores), membro e co-fundadora do Movimento Afro vegano (MAV), Cofundadora da Adelinas  – Coletivo Autônomo de Mulheres Negras.

Confira abaixo!

 

ester maria horta fala sobre esclerose múltipla
‘Sem roamantizar, experienciar o adoecimento crônico me trouxe um novo olhar para a vida’/Arquivo Pessoal


Morte Sem Tabu: Ester, confesso que sei muito pouco sobre esclerose múltipla. E muita gente que nos lê também. Pode explicar o que é?  

Ester Maria Horta: O termo “esclerose múltipla” se refere a múltiplas áreas de cicatrização (escleroses) resultantes da destruição dos tecidos que envolvem os  neurônios (bainha da mielina) no cérebro e na medula espinhal. Essa destruição denomina-se desmielinização. Desta forma, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica, autoimune, desmielinizante, inflamatória, que afeta o sistema nervoso central.  Ela é autoimune pois é o  próprio sistema imunológico, responsável por combater agentes externos como vírus e bactérias, que ataca células saudáveis. No caso da EM, ataca a bainha de mielina dos neurônios. Imagine um cabo elétrico, ele tem um fio elétrico interno, mas para que a condução da energia aconteça ele precisa estar recoberto por um isolamento externo certo? A bainha de mielina funciona como a capa de um fio elétrico (um condutor, mas também age na manutenção do neurônio) que, quando perdida, acaba gerando dano na função do neurônio, tal qual um fio desencapado não conduz seu potencial elétrico adequadamente. Ou seja, dependendo da região do cérebro na qual tenha ocorrido a lesão, as manifestações serão diferentes. Atinge geralmente pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo tem EM, sendo que no Brasil estima-se que existam 15 indivíduos com EM a cada 100 mil pessoas no Brasil, uma média de 35 mil brasileiros com a doença, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM).

Morte Sem Tabu: E quais os sintomas iniciais da EM e como ocorre o diagnóstico?

Ester: A Esclerose Múltipla é uma doença heterogênea, podendo ocasionar diversos sintomas neurológicos a depender da área do sistema nervoso acometida. Não existe uma manifestação neurológica típica, porém alterações visuais, fraqueza nos membros, desequilíbrio, descoordenação, alterações de sensibilidade e distúrbios urinários são as queixas mais frequentes. Fisioterapia e tratamentos medicamentosos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença. A EM é uma doença que costuma ter um início insidioso, com sintomas iniciais  difusos que se confundem com outras doenças e, geralmente, há um longo caminho de idas a médicos e especialistas até que se ocorra o primeiro surto da doença.

Como  bem define a  Associação AME- Amigos Múltiplos pela Esclerose, de forma geral, os sintomas mais comuns podem ser: sintomas sensitivos –  como perda da sensibilidade em determinada região do corpo, formigamentos, dor inexplicável; neurite óptica –  é o segundo sintoma mais comum, ocasionando embaçamento visual, perda do brilho das cores, até perda visual; e Sintomas motores e cerebelares –   podem  causar perda de força em algum ou múltiplos membros, descoordenação motora e tonturas.

É importante observar que os sintomas devem durar mais de 24h para serem considerados de origem neurológica. Tais sintomas podem também variar, ir e vir, o que torna o diagnóstico mais desafiante. É possível que a pessoa  tenha  um sintoma e, em seguida, meses ou anos depois tenha um completamente diferente, e não notar a relação entre os dois eventos. Quanto ao diagnóstico, este necessita ser realizado por neurologista, de preferência com especialidade no diagnóstico de EM. A  ressonância magnética (RM) é o melhor exame de imagem para detectar a esclerose múltipla. De forma geral, o exame é capaz de detectar as áreas de desmielinização no cérebro e na medula espinhal. O acesso a tratamentos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico e fisioterapia aliado a um cuidado na saúde como um todo, incluindo os cuidados de saúde mental,  ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença.

Morte Sem Tabu: Ester, como foi quando você descobriu a doença?

Ester: Na manhã do dia 12 de outubro de 2016, algumas semanas antes do meu aniversário de 30 anos,  subitamente, ao despertar, notei que minha vista direita estava estranha, havia uma espécie de “borrão” bem no centro do meu campo de visão à esquerda. Assustada, primeiramente cheguei a pensar se tratar de algo nos olhos, olhando no espelho tudo estava normal. E como já tenho diagnóstico de epilepsia (controlada há mais de 13 anos) fiquei ainda alarmada quando já imaginando poder se tratar de algo neurológico. Como não tive outros sintomas fui primeiro num pronto socorro de olhos onde no dia seguinte realizei exames de campo visual (que se mostrou alterado) e o de retinografia que acusou que não era nada na retina e sim um “edema de papila” (ou seja, no nervo ótico), e sendo assim que era necessário que eu procurasse um neurologista.

Naquele mesmo dia, orientada por uma neurologista colega de trabalho, acompanhada de meu marido, fui a um hospital,  cujo pronto socorro havia  a especialidade de  neurologia na emergência. Já no pronto socorro foi detectada a neurite óptica (a desmielinização/inflamação do nervo óptico), via Ressonância Magnética, mas era preciso investigar a causa. Lá, fiquei internada por uma semana, tratei com pulsoterapia (corticoide intravenoso) e foram realizados diversos exames  como tomografia, ressonância magnética, líquor, fan e outros exames laboratoriais que descartaram causas virais, infecciosas ou cancerígenas.

O resultado do  exame de líquor, que seria decisivo, só saiu alguns dias depois que tive alta do hospital e indicou a esclerose múltipla. Eu estava aguardando este resultado para decidir o que faria em seguida. Mas anos antes, em meados de 2013, experienciei sintomas que eram até então inespecíficos: fadiga, eventos súbitos de dificuldade de manter o equilíbrio e  de caminhar. Eram sintomas que iam e vinham, e afetaram minha rotina, minha vida acadêmica e profissional, porém sem respostas médicas para o que era.  De 2015 a 2016 voltei a ter os mesmos eventos, até que em outubro ocorreu o primeiro “surto” de EM, tal como descrevi acima. Com esse histórico, tive diagnóstico fechado por um neurologista especialista na área. Hoje, quase 5 anos depois, sigo sem novos surtos da doença, graças a um diagnóstico e tratamento adequados. Mas esta  não é uma realidade para todos os pacientes de EM. Ainda mais neste ano de pandemia, que encaramos escassez de medicamentos devido ao sucessivos atos que visam desmonte do SUS, inclusive para EM, aumento abusivo dos planos de saúde e direitos sendo retirados para pessoas com deficiência.

Morte Sem Tabu: Você é psicóloga, faz diversas reflexões sobre luto, e costuma dizer sobre seu próprio luto em relação à doença. Como é isso pra você? Por que você traz esse processo também como um luto? 

Ester: O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde. Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física. Além de amigos e familiares poderem também viver um luto antecipatório, antecipando a possibilidade de perda daquele ente querido, frente a um diagnóstico, o que acaba muitas vezes gerando distanciamento, as pessoas se distanciam daquela pessoa que ainda em vida carrega em si o estigma de uma morte em potencial, por ser a doença uma ameaça à vida.

Desta forma, o luto antecipatório envolve a família, amigos e entes queridos próximos ao paciente. Cada um desenvolve mecanismos a fim de interpretar e lidar com a possibilidade da morte e para o enfrentamento do que estará por vir. No meu caso, quando ainda nos exames iniciais recebi o informe de que se tratava de algo neurológico e  que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Pois era justamente o que mais temia, até então ainda imaginava que poderia ter sido algo apenas na retina.

Nesse momento, lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido que me aguardava na sala de espera e só conseguir dizer  “A causa é neurológica…” com um misto de sentimentos, relembrando a jornada que eu já havia passado com o diagnóstico de epilepsia que, naquele momento, era algo já distante e superado. Era algo como “lá vamos nós outra vez..,”. Naquele momento, meu marido segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava, pois era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar.

O diagnóstico, apresentado em nossa vida de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surge o medo da morte, o medo do incerto. E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que  demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao  objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico.

E esta dor que tanto se refere  apesar de parecer abstrata, não está perdida em nosso corpo, ela tem uma razão e uma explicação fisiológica de ser, ou melhor, neurofisiológica. Do ponto de vista neuropsicológico, o luto, a percepção da perda desencadeia respostas psicológicas que se intercomunicam pelas vias neurológicas. Neste sentido há a participação do  sistema límbico  –  conjunto das estruturas neurais que são associadas com os comportamentos e a memória emocionais –  em especial da amígdala, uma destas estruturas,  que por meio da ínsula que está altamente envolvida no sentido do estado interno do corpo e atua no estado de consciência.  São circuitarias que se encontram em atividade diferenciada num processo de luto e estão relacionadas aos sintomas de alteração de percepção do próprio corpo no processo de luto, aquela “sensação de corpo pesado, cansado”. A amígdala também é ativada nos episódios de memórias recorrentes e ruminantes que surgem num processo de luto bem como  na fase de resolução e compreensão deste, na qual são produzidos sentimentos diversos, agradáveis, desagradáveis ou mesmo neutros. Pessoalmente, experienciar o adoecimento crônico, longe de romantizar essa vivência, me trouxe um novo olhar para a vida, mais aprofundamentos de leituras e estudos nesta temática e  em especial um olhar ainda mais cuidadoso no que diz respeito às pessoas que me deparo na minha prática profissional enquanto psicóloga-neuropsicóloga.

Morte Sem Tabu: No dia 30 de agosto comemorou-se o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla. Muito pouco se fala como a doença acomete mulheres negras. Pode falar um pouco sobre isso?

Ester: Celebrada pela primeira vez em 2006, a data foi criada pela  ABEM com o objetivo de buscar uma representatividade nacional que aumentasse a visibilidade da Esclerose Múltipla, seus pacientes e os desafios por eles enfrentados no dia a dia. Desde 2014, o mês de agosto ganhou cor em prol da conscientização desta  doença autoimune que mais acomete jovens adultos em todo o mundo. O Agosto Laranja foi criado pela AME – Amigos Múltiplos pela Esclerose com o objetivo de ser um movimento coletivo para desmistificar essa condição crônica de doença e fomentar o diagnóstico precoce, mais qualidade de vida, acolhimento, respeito e dignidade para quem convive com a doença, seus amigos e familiares. A condição atinge geralmente pessoas jovens entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres,  então quando falamos da mulher negra sabemos que essa condição vai se somar com os desafios que o ser mulher negra, num país marcado por uma cultura sexista, patriarcal e racista.

Com minha experiência tive contato com pesquisas que demonstram que, diferentemente do que se pensa, a EM é tão comum na população negra quanto na população branca. Ao integrar a comunidade da organização ‘We are illmatic’ – uma organização americana, sem fins lucrativos, de mulheres negras pacientes de Esclerose Múltipla, tive acesso a  estudos que demonstram ainda que ela é, na verdade, mais comum na população negra.

Acontece que há menos pesquisas investigando a EM na população negra.  Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme   afirma Mitzi Joi Williams fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta.

Desta forma, a velha noção de que a esclerose múltipla é a doença de uma jovem mulher branca continua a afetar a rapidez com que os negros são diagnosticados e como são tratados. Outra pesquisa, mencionada pela National Multiple Sclerosis Society (Sociedade Americana de Esclerose Múltipla) constatou que de 60.000 artigos publicados sobre a EM, apenas 113, ou cerca de 0,2%, se concentram nos afro-americanos. E pessoas negras têm 47% mais chances de desenvolver EM do que pessoas brancas.

Já se sabe inclusive que ela apresenta curso e sintomatologia com especificidades na população negra, como por exemplo: ter recaídas mais frequentes e pior recuperação dessas recaídas, quadro mais incapacidade e maior risco de envolvimento dos nervos ópticos e medula espinhal (EM óptico-espinhal) e inflamação da medula espinhal (mielite transversa). Essa pesquisa, que inclui uma revisão de 2019 na Current Neurology and Neuroscience Reports e um estudo de 2018 no Brain, também mostra que pessoas negras com EM têm sinais anteriores de deficiência e mais problemas com locomoção e coordenação do que pessoas brancas. Além de estudos já apontam a relação de baixos níveis de vitamina D em pessoas negras com esclerose múltipla.

Aqui estamos falando de pesquisas estadunidenses, cuja população negra não é majoritária no país. E no Brasil, no qual a população negra compõe mais da metade da população (cerca de 56%), ainda não há estudos e levantamentos amplos que incluam o quesito raça/cor. Recentemente, em uma live referente ao Agosto Laranja promovida pela ativista Alyne Sousa , a convidada a escritora Jéssica Teixeira trouxe a problematização sobre pesquisas e  plataformas de monitoramento da EM no Brasil, apesar de trazerem dados importantes sobre acompanhamento de aplicação de políticas públicas não trazerem informação do quesito raça/cor.

Ainda que quando se fala em saúde, além das pesquisas se pautarem nos corpos brancos, mesmo quando se faz levantamento dos corpos negros, em regra, são corpos cisgêneros. É preciso pensar também em como as mulheres trans e travestis negras são afetadas, em vista de que lhes é negado o direito ao acesso ao acompanhamento básico de saúde, lhes é negada a humanidade.

Por meio dos dados do relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam as violências a que mulheres trans e travestis negras são alvo, bem como os levantamentos da FONATRANS – Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, nos leva a inferir que é preciso pensar no subdiagnóstico ainda maior  da EM na população trans negra. Organizações como a ‘Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam – VNDI’  e o ‘Quilombo PCD’, apesar de não serem coletivos que abordam exclusivamente sobre EM, mas trazem a discussão e a voz de pessoas negras com deficiência, também nos aponta como falar da realidade da mulher negra nos leva a pensar na multiplicidade de vivências negras e como o diagnóstico de EM irá impactar de maneira diferente em cada uma destas vivências, ao se somar a outras opressões a que àquela mulher já está exposta. São também espaços que precisamos nos aproximar e fortalecer a fim de que possamos realizar um trabalho de base que chegue à mulher preta periférica e transformemos as políticas públicas e políticas de estado para que possam de fato proteger essa população.

Morte Sem Tabu: O que fazer para ampliar o acesso à informação sobre EM? 

Ester: Para você que está lendo mas não é uma pessoa com EM, porém convive com alguém que tem (ou mesmo que seja outro quadro autoimune), em primeiro lugar: 

  • Escute: entenda como a pessoa com EM está se sentindo e procure não comparar o estado de saúde dela com o de outras pessoas. Cada pessoa experiencia a EM de uma forma diferente.
  • Pesquise: é cansativo para uma pessoa com EM ter que, a todo momento, explicar o que ela tem. Uma das coisas legais que você pode fazer é pesquisar sobre, para compreender um pouco mais a realidade dela e para que você também possa ter mais informações para levar adiante e contribuir para combater tabus e preconceitos.
  • Acolha: Há dias bons e dias ruins, dependendo do curso da doença e de tantos outros fatores, muitas vezes o acolhimento que você oferecer vai contribuir muito para a qualidade de vida daquela pessoa.

Morte Sem Tabu: Pode deixar uma mensagem para pessoas que passaram ou estão passando por situações semelhantes à sua?

Ester: Gostaria de (re)afirmar que, ao mencionar, em específico, a minha vivência com EM, falo do meu lugar, do lugar de uma mulher negra cis e profisisonal da saúde, mas as histórias são múltiplas e minha experiência não pode ser tomada como um “exemplo” ou a simples ideia de que é “possível superar a doença” como um “caso de superação”. A “superação”, se é que se pode usar este termo, não depende única e exclusivamente da(o) paciente. Tive a possibilidade de ter direito de acesso ao diagnóstico e tratamento;  ter um plano de saúde, contar com o apoio de meu marido e minha mãe, além de já ter familiaridade com o assunto, dada a minha profissão.  Ainda assim, como qualquer outro paciente, enfrento desafios diários principalmente em lidar com o preconceito e perda de oportunidades que tais diagnósticos geram, fruto da desinformação e preconceito ainda existentes. Nesse percurso, depois que falamos abertamente sobre o diagnóstico, não temos como controlar as reações alheias, como abordei anteriormente, familiares, amigos e conhecidos também vivenciam um luto antecipatório e lidam com suas próprias ideias e tabus internalizados acerca da morte e do adoecimento.  Algumas pessoas podem se afastar, outras se silenciam, outras ignoram. Mas, ao mesmo tempo, novas amizades chegam e com elas novos aprendizados. Estar num grupo de apoio contribui para encontrarmos novas soluções e perspectivas. Dê tempo ao tempo. Há e haverão desafios e sintomas benignos, incômodos que vez ou outra ocorrem. Há e haverão dias bons e dias ruins. Espero que ao ler esta entrevista, este possa ter sido um dia bom e espero que assim continue. Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada. Juntos, de fato,  vamos mais longe. Estou à disposição para dar as mãos para mais colegas de caminhada.

Organizações para acompanhar:

AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose) 

Abem (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla

Blogs de mulheres negras que falam sobre sua experiência com EM:

Ester Maria Horta: @ester_psi (colabore com o projeto de neuropscologia comunitária doando pelo PIX: neuropsicologiacomumitaria@gmail.com)

Alyne Souza: @aesclerosadarara

Jéssica Teixeira: @jazzeflow


Atualizado em 30 de setembro de 2021 às 10:08