Memorial da Despedida: para nunca esquecer seu nome 

No centro da cidade de São Paulo, a praça que abriga a Igreja Nossa Senhora da Consolação abriga, também, um Memorial transitório em homenagem às vítimas da pandemia do Coronavírus da cidade. O Memorial da Despedida traz pelo menos 38 mil cata-ventos, um para cada uma das vítimas, feitos a partir de caixas de leite pela tradicional Escola de samba Vai-Vai

Os visitantes são convidados a escrever os nomes dos homenageados em fitas coloridas que são amarradas ao cata-vento escolhido.

Eles são recebidos por produtores contratados pela Secretaria Municipal de Cultura, como Elisete Jeremias e Patrícia Sueza. 

Diretora de palco teatro e produtora executiva, Elisete não pode exercer a profissão durante a pandemia. Moradora da Praça Roosevelt há 20 anos — onde está o Memorial — ela observa os próprios vizinhos.

Caminham com cachorros, skatistas praticam suas manobras, outros fazem musculação. Alguns estendem uma toalha e tomam sol.

Os monitores, como Elisete, olham com ternura para cada um que se aproxima. Impossível não elucubrar sobre quem estão homenageando. Será um marido, a esposa, um filho, o pai, um amigo, a mãe? Qual a história por trás de cada ação?

Os visitantes do Memorial se aproximam sensibilizados e muito emocionados. Afinal, estão ali para prestar uma homenagem a alguém que morreu de covid-19. Uma morte traumática, avassaladora. Privados da possibilidade dos ritos fúnebres que tanto nos ajudam a contemplar e assimilar a dor.

O acolhimento é feito com muita delicadeza. “O efeito do luto ainda é forte nas pessoas. Alguns se aproximam para ler os totens explicativos, como o de apresentação, o que fala sobre luto e a lenda do cata-vento. Aí, sugerimos as fitinhas coloridas para as homenagens. A própria pessoa amarra a fitinha. Para eles, essa ação de amarrar as fitinhas é importante. A homenagem e o pensamento estão nesse ato, que se torna um ritual”, diz Elisete.

É comum os produtores estabelecerem uma relação com os visitantes. Um dia, Elisete chegou na praça e se deparou com um bilhete. Um homem tinha chegado mais cedo, deixou seu número de celular e os nomes das pessoas que gostaria de homenagear. Elisete escreveu os nomes, amarrou aos cata-ventos, fotografou e enviou as fotos. 

Essa relação gera uma conexão muito importante para quem está em luto. “Muitos nos contam a história de quem morreu. Tem gente que pega 4, 5 fitinhas, senta e começa a escrever.  Tem gente que pergunta: meu irmão não faleceu em São Paulo, mas eu posso colocar fitinha para ele? Claro, claro!Tem gente que se emociona só de ler a palavra ‘luto’. Tem muita história silenciosa com eles. Comentam, esse é para “meu pai”, “meu irmão”. 

  Elisete também relata que algumas pessoas que não tiveram oportunidade de dar adeus, estão encontrando uma maneira de significar essa despedida. “Em diversas crenças, ritualizamos os nomes das pessoas. Por exemplo, colocamos nomes nas missas católicas. Sentimos que as pessoas estão indo lá, conversando com seus entes queridos, e dando adeus. É como a frase do Mia Couto que está atrás das nossas camisetas.  ‘Os mortos não morrem quando saem da vida, morrem quando são esquecidos’”. 

          Elisete diz que o Memorial está sendo respeitado por quem frequenta a praça à noite. É comum danificarem a praça, quebrarem garrafas durante a noite, mas ela considera haver um respeito pelo o que está acontecendo aqui.

“O não esquecimento que está na poética deste trabalho é o mais bonito disso tudo. Fazer parte de uma ação pública, estar ali com as pessoas, tem sido meu palco, meu teatro”. 

 Patrícia Sueza também é uma produtora cultural contratada pela Secretaria Municipal de Cultura para receber os visitantes na praça. Publicitária e escritora, ela vê importância desse ritual de despedida. “Muitas pessoas não tiveram a oportunidade de se despedir, então é uma forma de homenagear e ter esse momento simbólico de passagem”, ela diz ao se identificar com essas pessoas. Patrícia perdeu sua avó para a covid-19 há duas semanas. “Foi tudo muito rápido”. 

Não foi sua única familiar que partiu. Em janeiro, a tia morreu de Covid-19. “Por eu ter passado por isso, tenho tido essa empatia e fiquei bem mexida em estar participando dessa monitoria”. 

Patricia se emociona com as histórias que presencia. Se diz marcada por cada um que passa.

         Um senhor se aproximou, acompanhado da esposa. Sentou e começou a extravasar pensamentos em voz alta, refletindo sobre o que escrever na fitinha. Até que disse: “Só posso escrever uma coisa. ‘A melhor mãe do mundo’”. 

        Duas mulheres chegaram juntas para fazer a homenagem. As duas perderam seus maridos, que eram irmãos. 

         Um rapaz com deficiência visual, perdeu o pai e sentiu não ter tido uma despedida. Patrícia o acompanhou nesse momento simbólico.

Um senhor veio de Maringá, no Paraná, especialmente para fazer uma homenagem.

         E, ainda, uma moça que se aproximou super emocionada. Contou que seu marido pegou Covid-19, ficou hospitalizado e recebeu alta. Foi para casa carregando sequelas. Um mês se passou e ele faleceu. A esposa entendeu esse momento como um presente, uma oportunidade de despedida nesse mês que ficaram juntos em casa. 

Esses produtores estão fazendo um lindo trabalho de acolhimento. Abertos e sensíveis para receber e encaminhar os visitantes a suas homenagens e a serviços de atendimento ao luto, estampados em um dos totens do Memorial.

Registro aqui meu agradecimento e admiração pelo trabalho de vocês.

O Memorial ficará na praça Roosevelt até 2 de novembro na cidade de São Paulo. Neste dia, os cata-ventos poderão ser levados para casa e serem usados em um ritual particular.

Estamos elaborando planos para levar esta ação a outras cidades. Os cata-ventos grandes terão outros destinos, que anunciaremos em breve, e as pessoas poderão continuar suas homenagens no nosso site: www.memorialdadespedida.com.br.

Um abraço em todos vocês que sentem a perda de alguém querido. O luto é um processo individual, cada um irá senti-lo de uma forma, e duração, totalmente diferente do outro. Perder alguém na pandemia é um processo de luto muito traumático. 

Ter apoio nesse momento é fundamental. É possível verificar locais de atendimento gratuito no site do Mapa da Saúde Mental. E no dia 2 de novembro, Feriado de Finados, haverá uma ação especial, coordenada pelo Instituto Quatro Estações, para atendimento gratuito que pode ser agendado no WhatsApp: 11-97437-8686.

Até breve,

Camila

Elisete no Memorial da Despedida. Crédito: Guinho da Vai-Vai
Patrícia no Memorial. Crédito: Brunna Marchese

 

Crédito: Patrícia Sueza