Chá virtual sobre perdas: ‘É preciso respeitar nosso estado de luto’
Você já imaginou tomar um café ou chá para falar sobre luto? Pensando que todas as pessoas em algum momento já viveram algum tipo de luto –morte de entes queridos, fim de relacionamentos, ou a mudança de trabalho– um chá sobre o assunto soa bem possível, não é mesmo?
Para ouvir histórias de perdas entre 2020 e 2021, a diretora teatral Mirian Fonseca lançou em suas redes sociais o convite “Vamos tomar um café/chá”, onde se coloca à disposição para escutar de maneira cuidadosa quem perdeu familiares e amigos nesse período.
Nesse tempo, Mirian perdeu o avô, uma tia, uma sobrinha e alguns amigos. Diante do próprio luto, e para tentar refletir e elaborar a dor, iniciou esse processo criativo sobre a temática junto a outros artistas.
Aluna do curso de Artes Cênicas – Direção Teatral da Escola de Teatro da UFBA e artista colaboradora do Coato Coletivo, que pesquisa as interações entre arte e tecnologia na Bahia, a escuta integra o projeto “Dos que vão morrer aos mortos” e até o fim do ano irá se tornar um vídeo-art.
“Como parte do processo, resolvi convidar pessoas para tomar um chá virtual para compartilhar suas experiências de forma livre, me colocando à disposição através de uma escuta ativa e afetuosa”, conta. Para participar, é bem simples: envie um e-mail para mirian.fonseca97@gmail.com ou, então, uma mensagem em seu perfil no Instagram.
Mirian acredita que falar liberta e nos ajuda a entender os ciclos da vida. “Eu acredito que devemos celebrar a vida do outro, mas também devemos respeitar nosso estado de luto. Falar sobre o luto nos ajuda a entender que os ciclos se fecham, que há voos que não podem ser impedidos e que a vida é feita de encontros e despedidas. Sinto que a gente evita muito falar sobre esses momentos de passagens”.
Cada história é única
Até agora já ouviu 13 pessoas. As conversas são literalmente um chá virtual. A diretora artística convida a pessoa a estar com um chá, café ou água. “Sempre começa o encontro perguntando qual é a bebida que está tomando”.
Durante a prosa, Mirian escuta as histórias e também compartilha as suas, próprias. Em conjunto, pensam uma imagem que simbolize a conversa, sendo esta a figura que também irá compor o vídeo-arte produzido por Mirian.
O processo é permeado pelos mais diversos sentimentos, assim como o próprio luto. “Tive muitos momentos de riso com as pessoas, momentos de lembrar das pessoas que se foram, com muito cuidado, com muito carinho. Há momentos tensos. Eu que choro ou a pessoa chora. Eu tô ali, com muita vontade de abraçá-la e digo isso a ela, que quero abraçá-la mesmo que seja virtualmente, para que ela se sinta abraçada”.
Em uma conversa, a pessoa narrou a perda de um parente, um jovem negro e trouxe e lamentou por ele não ter vivido seus sonhos. A imagem que sintetizou essa conversa foi a de uma árvore cortada.
“Eu fiquei pensando muito nisso, pensando nos meus irmãos, pensando sobre perspectiva e sobre quanto nós, pessoas negras também somos atravessadas. A gente não consegue falar, a gente não consegue lidar com isso. A gente também não entende esse processo de luto porque não aprendeu a lidar com nossas emoções”, diz.
Mirian não sabe com exatidão quando criou consciência da existência do luto. “Sou uma pessoa que já vivenciou inúmeras perdas (não apenas relacionadas à morte) desde muito nova, e nunca consegui falar abertamente sobre elas”.
Nas sessões terapêuticas, percebeu que o psicólogo sempre utilizava a palavra luto para nomear situações e sentimentos. Seu interesse pelo assunto só aumentou.
No primeiro trabalho como diretora teatral, encarou o assunto de perto, já que o experimento cênico trazia o luto de mulheres negras que haviam perdido seus filhos para a violência policial.
Segundo o Atlas da Violência de 2021, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Entre os não negros (amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil.
“Fruto de uma pesquisa coletiva com o grupo de teatro do Instituto Federal da Bahia- Campus Simões Filhos, em ”Neides”, me interessava saber como as mães que tinham perdido seus filhos se sentiam, como era este luto”, conta Mirian.
O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. Por trás dos números, há também uma violência não letal, tanto no intuito de preservar a vida de seus filhos, quanto para recuperar a memória de jovens assassinados.
Mirian acredita que a morte de pessoas negras é muito banalizada na sociedade brasileira e, por isso, tem também refletido sobre necropolítica. Aqui no Morte Sem Tabu, falamos sobre isso ouvindo mães de vítimas da violência estatal e já explicamos como a necropolítica afeta de diferentes formas a população negra no país.
“Venho também buscando referências de outras mulheres negras que falem sobre o luto para me guiar para e no meu trabalho em geral, venho buscando resgatar rituais de passagens muito comuns em interiores da Bahia que tem forte inspiração em rituais afro-brasileiros”, diz.
A morte faz refletir sobre a vida
Foi apenas em 2018, com o falecimento de sua avó, que Mirian percebeu quanto a morte a fazia refletir sobre a vida, a família e os sentimentos que ficam quando alguém parte.
“Movida pelo desejo de me conectar com a pessoa que minha avó foi e de ouvir histórias de outras mulheres negras, dirigi em 2019 um experimento cênico onde reuni histórias de avós de quatro performers e da minha avó que já tinha partido para um outro plano”.
Nesse meio tempo, perdeu outras duas pessoas bem próximas, acumulando nela uma sensação de não compreensão sobre essas partidas. Em 2020, com a chegada avassaladora da pandemia, a ideia do luto a assombrou a tal ponto, que Mirian começou a ter medo de perder novas pessoas.
“Tinha muito medo de perder alguém neste momento, ao mesmo tempo que sentia um vazio gigante pelas perdas das outras pessoas. Vi relatos de muitas pessoas próximas que morreram de Covid-19”.
Ao fim de 2020, ela gravou um documentário com o avô de 92 anos para entender como uma pessoa idosa estava atravessando a pandemia diante do isolamento de amigos e família.
“Criei um vínculo inacreditável com ele e uns 20 dias depois (íamos continuar gravando), ele partiu, junto da família. Uns meses depois, perdi uma outra tia e uma sobrinha. Foi daí que a perda da morte começou a me atravessar de maneira muito mais avassaladora”.
Desde que começou o projeto, Mirian se sente atravessada. “As imagens que as pessoas atravessam meu corpo de forma única. Eu acho que isso é o ápice da performance, que é o ato de ritualizar e entender. Todas essas conversas vão se tornar imagens futuramente, e elas dizem muito. Dizem não só sobre mim, dizem muito sobre o coletivo. Eu acho que nesse período de pandemia, o luto é coletivo”.