Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Uma poesia para cada dia que resta https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/#respond Fri, 01 Feb 2019 19:33:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/laura_graduation-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1679 Rodrigo nasceu em Belo Horizonte, há 45 anos. Hoje, mora em São Francisco, Califórnia, onde trabalha como engenheiro de software. Foi ali, no escritório, que recebeu o resultado de um exame anunciando: câncer pancreático, metastático. “No dia que escutei a notícia foi um pânico, desespero. Me ligaram falando que havia algo muito sério e que o laudo estava online. O laudo falava em câncer pancreático com grandes chances de metástase. Olhei as estatísticas de sobrevivência e vi que eram em meses e não em anos. Fui para casa chorando, mas minha esposa me ajudou muito. Aceitei relativamente rápido meu destino. Tá, não gosto dessa palavra, mas pode ser sim, vai: destino”.

Era pouco antes do Natal, 2017. Rodrigo foi a um dos mais renomados cirurgiões pancreáticos, em Stanford, que disse: “não há esperança de cura”—não era viável operar o tumor. Mas Rodrigo queria mais. Final de ano não é um bom período para o pai de duas meninas desaparecer. Final de semestre, trabalhos na escola, perguntas que ficariam sem respostas. Ele decidiu adiar o fim ao máximo, tentar os tratamentos possíveis, lutar.

Os caminhos que podem ser percorridos nessa “luta” exigem uma conversa sincera e honesta com o médico. Esse tipo de conversa é um hábito nos Estados Unidos, uma regalia no Brasil. Ele trocou de oncologista no meio do caminho, após a oncologista inicial dar por encerrado o tratamento. “O oncologista atual, do fim, é ótimo. Pão, pão, queijo, queijo. Compartilhou comigo a escolha do tratamento. Ele me deu três alternativas, contou os prós e contras de cada uma e me deixou escolher. Cada semana eu ia lá e conversava sobre o tratamento com ele. Com a piora do meu quadro, ele apontou a alternativa da sedação definitiva. Aqui, essa sedação é uma coisa delicada. No Brasil, é bastante comum.”

Durante nossa conversa, fiquei sensibilizada com sua postura serena, lúcida e positiva perante a proximidade da morte. Ele se sente honrado por ter tido esse tempo, esse um ano e pouco entre o diagnóstico e o momento atual, que é mais definitivo. Se sente abençoado por ter tido tempo para preparar sua morte, sua despedida. Um ataque cardíaco, por muitos considerado uma morte desejável por ser rápida, é visto por ele como ruim. Seu pai morreu assim, de repente, passeando em Goiânia. Rodrigo vê sua vida entre aquele dia no escritório e o hoje como um presente, com a consciência de que cada dia a mais vale a pena.

“É como se eu tivesse morrido e ganhado um bônus para usar da melhor forma possível. De um lado, eu comecei a fazer tudo como se fosse possível ter uma cura. Já do ponto de vista filosófico e psicológico, de auto conforto, eu pensava que mesmo tendo um tempo limitado, tive o benefício de ter tido a notícia antes de morrer. Eu usei esse tempo que eu ganhei para escrever dois livros, melhorar o relacionamento com minha esposa, e cuidar de coisas práticas, como ter certeza de que ela e minhas filhas estarão bem providas materialmente”.

Parte dessa atitude positiva pode vir da transmutação da dor oferecida pela poesia. Rodrigo começou a escrever, sob pseudônimo, um livro de poesias e crônicas (disponível gratuitamente aqui), como esta a seguir e outras que inseri ao longo desse artigo.

Graaaaaaande vantagem

A grande vantagem deste livro sabe qual é?

É que, a ele, ao contrário do outro, nunca me falta inspiração.

Se era pra escrever poesia e à cabeça me vem prosa,

Vai a prosa formatada como poesia, e pronto: está feito.

Aliás, vou lhe contar um segredo: não espalhe, sim?

Este livro é meio como o livro de areia, de Borges:

Dele parecem brotar as páginas, assim, sem mais,

Sem ordem definida, ou, sequer, um propósito claro.

Eu desconfio que no real seja ele mesmo que escreva-se,

Pelas madrugadas afora, enquanto durmo o sono dos justos.

Ah, e sabe qual é outra coisa que brota enquanto durmo?

O meu tumor pancreático. Eu o chamo de Ático, pra simplificar.

Ático, Ático, abane a cauda. Bom menino. Agora finja-se de morto!

Ó: em vez de venenos, dou-lhe açuquínhar. Não fingiu, o maldito.

Ando desconfiado de que ele não é cão, e, sim, uma píton reticulada.

Que diabo de cachorro tem, de uma só ninhada, oitenta filhotes?

 

Conforto espiritual

Rodrigo buscou conforto espiritual durante o tratamento, apesar de não ter uma religião específica. Fez, por exemplo, um curso de introdução ao zen-budismo, num mosteiro da região. “Eu gosto de elementos de várias religiões.  Um aspecto que eu gosto do budismo é o das pessoas passarem por um processo de melhoria. Estamos aqui por uma razão e isso vai gerar um crescimento para nós e para as outras pessoas. Gosto também do amor incondicional do catolicismo. Essa é a base da igreja e as pessoas esquecem. Ficam nesse nós e eles. O que não gosto do cristianismo é o inferno. Isso não deveria existir na religião. Ela deveria ser motivada pelo amor e não pelo medo”.

Autonomia na morte

Hoje, Rodrigo está em casa sob cuidados do Mission Hospice. Ele avalia a possibilidade de um suicídio assistido, como é chamado na maioria dos países. Rodrigo não gosta da terminologia. Ele tem razão, é horrorosa. A Califórnia a chama de “end of life act”. O paciente tem o direito de levar um remédio letal para casa e tomá-lo no momento que achar adequado. O coração demora aproximadamente 30 minutos para parar de bater. Na Suíça, é questão de segundos. Rodrigo já resolveu a parte burocrática do “end of life act” e tem essa opção à sua disposição. Outra alternativa que lhe parece mais palatável é a sedação definitiva. A pessoa é sedada profundamente, de uma maneira que, em geral, leva à morte em alguns dias. É uma alternativa legalizada no Brasil e bastante usada. Em muitos casos, sem o consentimento do paciente. “Eu me sinto no controle desse quando (da morte). Eu tenho duas opções para isso: o remédio de fim da vida e a sedação definitiva. Os dois estão esquematizados pela parte burocrática. É uma questão de decidir quando. Vai depender de quanto tempo eu ainda terei com razoável qualidade de vida, conversando com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, lendo algo legal, escrevendo… O que me leva pois a contemplar essa possibilidade é ver que essa minha qualidade de vida nessas últimas semanas piorou bastante”. Ter qualidade de vida para Rodrigo é poder conversar, estar bem ao lado da família, enfim, não estar em um “inferno”, vomitando, com dores, azia, diarréia…

Leia mais sobre esse tema na categoria eutanásia e suicídio assistido no blog.

A jornada até essas “últimas semanas” foi intensa. Ele tentou vários tratamentos possíveis, quimioterapias, terapias direcionadas e uma imunoterapia, até que seu corpo parou de reagir aos tratamentos.“Fiz 5 regimes de tratamentos diferentes. É muito raro isso. Os dois primeiros foram cobertos pelo seguro de saúde do meu emprego. O terceiro foi gratuito, porque era experimental, bancado por um laboratório grande. O quarto e quinto, mais heterodoxos, foram com seguro parcial”. Quando o médico disse que não havia mais opções para ele, pensou: “agora é uma questão de avaliar a qualidade de vida. Eu vou ter majoritariamente dias que valem a pena viver ou dias que não valem a pena?”

Rodrigo foi o cuidador primário da sua mãe—que morreu de câncer um ano e meio antes de seu diagnóstico—na última semana que ela passou em casa. “Eu fui também a pessoa que estava ao seu lado no momento da morte. O processo de ter que lidar com sua doença foi mais doloroso do que ter que lidar com a minha própria doença. Primeiro porque a sobrevivência no meu caso era difícil desde o início, mas não impossível. Embora estejamos falando de 1 ou 2% de taxa de sobrevivência a longo prazo, havia uma esperança. É um mecanismo de autopreservação. Eu entrei nesse modo. De luta, de tentar de tudo. Essa luta pela sobrevivência absorveu muito da minha energia”.

Somos condicionados a ver a morte como uma inimiga. Em diversos obituários ainda se lê: lutou contra um câncer até o final mas não aguentou, perdeu a vida para um câncer, batalhou até o fim. A morte de alguém doente, como ocorre na maioria dos casos e muito provavelmente será o meu destino e o do leitor, traz em si essa teoria cinematográfica da trajetória do herói. O herói vence a morte. O anti-herói é vencido por ela, definha, morre. O curta metragem “A Senhora e a Morte” faz uma caricatura desse momento, colocando o médico como um ser nada simpático, a lutar contra a morte a qualquer custo.

Rodrigo não vê seu tratamento como uma perda, apesar de usar a palavra “luta”. Ele vê seu tempo, e cada dia que passa, como uma conquista. Ele quer decidir como e quando morrer. Ele possivelmente sentiue sente um desconforto que muitos de nós nem consegue imaginar. Mas ele aprecia cada bom momento que passa com sua família e com os amigos. Cada momento que compartilha, cria. Não se contentaria com menos do que isso. Não é possível saber se Rodrigo ainda estaria vivo sem os 5 tratamentos a que se submeteu. Inclusive, ele não poderia ser julgado caso tivesse optado por nenhum. Ele não teria desistido ou deixado de lutar. Essa ideia de “perdedor” é um estigma, uma construção social que se transforma ao longo do tempo. Para mim, essa história é um convite à reflexão sobre autonomia, escolhas, e a forma como nos comportamos perto de alguém diagnosticado com uma doença sem cura. E, claro, uma valorização da vida, dure quanto durar.

 

Conte praquelas suas amigas que reclamam dos maridos

Que o menino

Mesmo cancerígeno

Mesmo pancreático

Mesmo envenenado

Mesmo irreativo

Mesmo semivivo

Mesmo operado

Mesmo metastático

Mesmo sem antígeno

Mesmo nesta briga

Mesmo tão pequeno

Mesmo tão doído

Mesmo tão drogado

Mesmo enjoado

Mesmo mal-dormido

Mesmo com preservativo, a não lhe passar veneno

Mesmo com dezoito anéis de ferro na barriga

Ainda agora, quiçá depois

Lhe causa, sem mais, um bom orgasmo ou dois.

No caso, dois.

Abaixo, um pouco mais da nossa conversa.

O que você acha da ideia da imortalidade?

“Toda vez que me perguntam sobre isso, eu penso nas semanas mais horripilantes que eu passei. Combinação de dor, náusea, vômito, diarreia. Eu tenho mais horror a esse cenário, da pessoa presa em uma situação de que ela não pode sair. Acho a imortalidade extremamente perigosa nesse sentido. Não gosto também da ideia de uma imortalidade imóvel, como no cristianismo, onde você atinge um estágio de plenitude, final e imutável. Mas aceito a imortalidade se for uma imortalidade com evolução contínua, aprendendo coisas novas, melhorando”.

Arrependimentos?

“Todos.  Eu queria ter tantas outras vidas para viver. Explorar outras possibilidades. E se eu tivesse feito isso diferente, ou aquilo? A vida é como fluir rio acima. Na medida em que ficamos mais velhos, vamos estreitando os afluentes. O ideal seria conhecer todo o rio, todas as nascentes. Arrependimento não é a melhor palavra, mas eu teria vontade de experimentar como seria a vida se eu tivesse feito outras escolhas. Não necessariamente as grandes decisões: as pequenas, as que parecem insignificantes. Eu tenho saudades do futuro, desse futuro do pretérito, do que podia ter acontecido, sabe? Honestamente, eu não estou angustiado, amedrontado… eu já estive psicologicamente muito pior do que estou agora. Mas eu queria ter feito mais na vida. Me deixa chateado não poder passar mais tempo com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, amigos, família… É chato saber que meu tempo agora é muito limitado. Eu queria ter realizado aqueles sonhos de criança, sabe?—como escalar o Aconcágua”.

Como seus amigos estão reagindo?

“Eu gosto de receber visitas. Escrevi uma crônica sobre isso que se chama Bem-vindo ao meu funeral. O amigo do seu amigo, por exemplo, fica sabendo e quer virar seu melhor amigo de repente. A pessoa faz aquilo na melhor das intenções. Muitos chegam com sugestões para dar. Por exemplo: uma amiga de infância que eu não via há décadas quis me levar no João de Deus. A irmã de um amigo disse: coma casca de limão. Outro amigo mais recente sugeriu brócolis e cúrcuma. E houve ainda um que prescreveu dois banhos frios por dia. Ah, e uma tia quis mandar nove sacos de folha de graviola do Brasil. Recebi dicas até de cogumelos alucinógenos. É uma preocupação sincera das pessoas, que eu tomo como uma prova de amor. Mas vou e guardo com carinho na minha lista de sugestões heterodoxas”.

Bem-vindo ao meu funeral

Ele não deveria estar ali, no regrado,

Mas é ali que clinica a massoterapeuta.

E ela é a única que o põe no ângulo certo e aplica a pressão certa

Sobre uma barriga com tumores tantos e tais.

Então lá vai ele pelo pátio principal da Corporação,

Apressado, em meio à sua licença médica.

Proibido não é, mas roga aos Céus que não o vejam

Os colegas vários que por ali almoçam.

Não é um colega, é um amigo da família que ali trabalha

Quem vem mais adiante pelo caminho, em conversa com um outro.

Está distraído. O verá? Será que o verá? Por certo o verá.

Ele sabe pela esposa dos detalhes da doença. Pronto: o viu.

Do dito se altera completamente o semblante: está consternado.

Ele pede licença ao outro e abre bem os braços, em exigência de firme abraço.

“Não, um sorriso por favor, meu caro, que ainda não é hoje o meu funeral.”

Só que claro que não, né, leitor? Seria uma grosseria sem tamanho.

“Eu lamento profundamente, sim? E a família como está?”

“Aqui: está tudo bem conosco. Estamos encarando da forma mais positiva possível.”

“Olhe, pois nós estamos orando muito por vocês. O que precisarem, é só dizer.”

“Estamos todos bem, de verdade. Mas muito obrigado pelos préstimos.”

Ele olha ao redor, de soslaio.

Ufa: ninguém conhecido parece ter notado a cena.

Imagine se logo além da quadragésima versão daquilo,

Estivessem a quadragésima-primeira, a quadragésima-segunda…

A verdade é que o amigo também não tinha remédio.

Fazer o quê? Dar-lhe um simples bom dia? Seguir adiante?

E quem é que mostra os dentes diante de um condenado?

Ele fez o estritamente sensato, se não exatamente o sensível.

“Olhe, um santo remédio pra isso, sabe qual é? O chá de folha de graviola.”

“Não, chá de casca de limão. Aliás, coloque casca de limão em tudo o que você puder.”

“Ó, não sou médica, mas aí vai um artigo que me parece excelente. De todo, não o li.”

“Dois dias de jejum antes da quimio, e um depois. Banho, só gelado, duas vezes por dia.”

“Cem gramas ou mais de brotos de brócolis por dia. E três gramas de curcumina.”

“Ah, o melhor é você seguir logo os conselhos do Doutor Lair Ribeiro.”

Tá, o Lair Ribeiro foi um exagero retórico. Um pequeno exagero retórico.

Mas o resto é só pra ficar nos parentes mais próximos e amigos mais sinceros.

Unguentos. Emplastos. Ervas. Ninguém diz nada disso por mal.

Aliás, este que vos fala é que deveria ser menos ingrato, honestamente.

E tomar cada receita tal por aquilo que por fato ela é:

Uma prova de que com ele se importam a valer os parentes, os amigos.

Oxalá jamais ponha o bom Deus em seu caminho tal prova, leitor.

Mas, se assim calhar, aceite o seguinte conselho:

Responda cada sugestão dessas com um sincero sorriso,

E use a parca energia que lhe resta para fazer o que lhe diz a oncologista, a nutricionista…

Por você ser jovem, as pessoas parecem se espantar mais?

“Talvez a reação seja mais intensa. Mas pouca gente tocou nesse aspecto específico. Me incomoda quando alguns falam: ‛não se preocupe, vai dar tudo certo, você vai se curar, tem que confiar no milagre, o segredo da cura é confiar que ela vai acontecer’. Eu sou um engenheiro, de coração. Eu acredito em estatísticas, seguir o que tem uma probabilidade minimamente razoável de acontecer. Eu não vou bater boca com ninguém por isso, mas ser relativamente jovem faz diferença nesse sentido. As pessoas chegam mais com essa conversa: você sai dessa. Eu não quero negar, quero lidar com o problema. A negação é chata e improdutiva”.

 

Quais diferenças você vê entre o tratamento no Brasil e nos Estados Unidos?

“Nos Estados Unidos, o tratamento em si é muito mais ágil, há mais opções. A pessoa está muito mais no controle. No Brasil, o oncologista falava o que tinha que fazer e ponto final. Aqui, nos EUA, tem uma troca. Pode ser uma questão cultural e até por razões legais. Minha mãe demorou dois meses para começar a se tratar. Eu estava no cirurgião na mesma semana do diagnóstico. Na semana seguinte estava começando a quimio. Mudei de oncologista no meio dos tratamentos. Mudei porque a primeira oncologista já não acreditava mais no tratamento. Não vou continuar com uma pessoa que não acredita no tratamento corrente e nem quer propor soluções alternativas. Mudei para outro médico com muita facilidade. Na semana seguinte, já estava começando outro tratamento. Essa facilidade de ter uma segunda opinião, terceira opinião, mudar de médico, é maior aqui, nos Estados Unidos”.

O que a convivência com a terminalidade nos ensina?

“A gente tem um mecanismo de defesa que não nos deixa pensar demais na morte. Ter um prazo concreto para a morte remove esse mecanismo de defesa e nos obriga a lidar com a morte como algo real. Serve para colocar a vida em perspectiva e pensar no imponderável, imaginar o que eu desejo para o provir, as alternativas que eu admito como desejáveis. E também para focar nas boas memórias, lembrar das minhas filhas quando eu as segurei em uma mão só, na maternidade. Eu penso muito nas minhas filhas como algo que, por si, já me valeu a vida. Uma das contribuições principais que eu deixo são essas duas mulheres… São ótimas, inteligentes, divertidas, e têm uma consciência social, uma consciência do papel que elas têm nesse mundo”.

 

Décimas do velho e bom Mestre Zossima

Ó, uma coisa me parece provável nisso tudo:

ou bem o barco flutua, ou bem ele afunda.

E, se ele flutua, ele flutua para todos.

E, se ele afunda, ele afunda com todos.

Por isso, pare de desejar que a água mine

Bem aos pés daquele seu vizinho mais chato.

Sim, que ele é chato, é chato. Eu concordo.

Ô pela-saco, meu Jesus Cristo.

Mas a enxutez, ou é para todos,

Ou é por um tempo bem limitado.

Então, por caridade, pelo bem da harmonia cósmica,

Tenha muito cuidado no você espera que aconteça, sim?

E como eu sei disso?

Bom, eu não sei. O principal da estória toda é que eu não sei.

Outro dia me apareceu alguém num sonho dizendo que se chamava Universo

E ele me disse que essa aí era a verdade. Mas vá se saber.

Outra coisa que ele me disse:

Que cada um, do seu particular ponto de vista,

Rema na direção que lhe parece mais promissora,

E o mar é quase que uma imensidão redonda, e só.

Por isso a resultante do esforço é muito pequena.

Bom, é pequena se comparada ao esforço.

Mas fato é que, se ninguém puser força no remo,

O barco seguirá à deriva.

Por isso reme, leitor.

E se a direção adiante não lhe parece frutífera,

Esprema-se por entre os demais,

E ache uma nova direção.

Reme e reze, mas reze por todos. Por todos, sim?

E peça perdão até aos passarinhos do bom Deus.

“Quem acredita no povo de Deus verá Sua glória,

Mesmo se antes não acreditasse em Deus.”

Essas são as exatas palavras do velho e bom Mestre Zossima.

“Nosso povo resplandecerá na face da terra e todos os homens dirão:

A pedra que os construtores rejeitaram,

Essa veio a ser a principal pedra, angular.”

“E lembre-se principalmente de que você não pode ser juiz de ninguém.

Pois na terra não pode haver juiz de um criminoso, antes de esse juiz compreender:

Ele mesmo é tão criminoso quanto aquele que comparece na sua frente,

E talvez ele seja o primeiro culpado pelo crime.”

]]>
0
Uma nova possibilidade para a doação de órgãos: gerar vida https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/01/11/uma-nova-possibilidade-para-a-doacao-de-orgaos-gerar-vida/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/01/11/uma-nova-possibilidade-para-a-doacao-de-orgaos-gerar-vida/#respond Fri, 11 Jan 2019 12:19:20 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/baby-tx-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1668 Por enquanto, o útero não faz parte da lista de órgãos possíveis de serem doados, mas um grupo de cientistas brasileiros pode mudar isso.

Conversei com o Dr. Dani Ejzenberg, ginecologista especialista em medicina reprodutiva . Seu estudo inédito, realizado com um grupo de 15 colegas das Disciplinas de Ginecologia e Transplante Hepático do Hospital das Clinicas da FMUSP, foi publicado na Lancet, revista inglesa considerada uma das mais renomadas publicações médicas do mundo.

A introdução do estudo nos ajuda a entender a importância do resultado alcançado. De 10 a 15% dos casais em idade reprodutiva sofrem de infertilidade. Desses, uma mulher a cada 500 apresenta infertilidade uterina irreversível, o que impossibilita os tratamentos tradicionais para engravidar, como a fertilização in vitro.

Em 2013, na Suécia, foram realizados os primeiros transplantes de útero, possibilitando a essas mulheres, engravidar. Elas receberam úteros  provenientes de doadoras vivas. Em setembro  2016, essa equipe brasileira de cientistas conseguiu, pela primeira vez na América Latina, realizar um transplante uterino usando uma doadora morta. Este procedimento teve êxito e possibilitou  o primeiro bebê nascido no mundo por um útero transplantado de  uma doadora falecida. Ele nasceu no dia 15 de dezembro de 2017. E está muito bem. Até então, já haviam sido feitas outras 10 tentativas nos Estados Unidos, Turquia e Republica Tcheca, sem sucesso. 

“Acabei de me encontrar com a mãe e com a criança. Ela se sente muito realizada”, conta Dr. Dani. Ele explica que, nesse procedimento de doação do útero, não há qualquer tipo de  transmissão genética para o feto. No caso deste bebê, o óvulo e o espermatozóide vieram do casal. “Este  embrião só precisava de um local adequado para se desenvolver. Como nunca tinha dado certo antes deste caso, muitos familiares poderiam  ficar receosos em permitir a doação do útero. Mas agora temos um caso de sucesso”, diz.

Esse caso de sucesso, exposto na pesquisa, é o de uma mulher de 32 anos, infértil devido a uma síndrome que afeta uma a cada 4 mil mulheres . Ela nasceu sem útero, mas com ovários. Ela foi encontrada em uma comunidade do Facebook que congrega mulheres com essa síndrome. Após análise criteriosa, 4 das 23 interessadas foram selecionadas para o estudo.

Dani explica como os critérios para a seleção da doadora do útero contribuíram para o sucesso do estudo. “Na Turquia, essa tentativa não deu certo porque usaram uma doadora que não tinha tido filhos. Nós optamos por usar doadoras que já tinham tido filhos e não haviam entrado na menopausa”.

Dr. Dani considera os próximos passos. “O primeiro ponto é avaliar, com um maior número de casos de  sucesso, se é viável expandir esse procedimento, quais os custos e eventuais riscos envolvidos. A partir daí, avaliar se este procedimento poderá ser coberto pelo SUS”. Atualmente temos locais de tratamentos gratuitos como o Hospital das Clínicas e o Pérola Bayton, mas são  iniciativas de governos estaduais já que o SUS não contempla até o momento o tratamento da infertilidade.

Há vantagens e desvantagens em usar uma doadora falecida segundo Dani. “Uma das principais  vantagens é não expor o doador ao risco cirúrgico, o que também contribui para  diminuir o custo, porque não teremos a hospitalização desse doador e eventuais complicações. A desvantagem frente ao modelo com doador vivo é a necessidade de ter uma equipe 24 horas disponível para retirar o útero logo após o falecimento. Mas como o Brasil já tem um sistema de captação de órgãos muito estruturado, é muito importante o reforço na conscientização das famílias mesmo em um momento de grande perda, para  doar órgãos, e agora também o útero”.  

Com o endossamento da Lancet, a pesquisa repercutiu positivamente no mundo todo. Tanto na comunidade científica como na imprensa, New York Times, Washington Post, Japão, The Guardian, Times, Newsweek, etc. “O grande ponto desse trabalho é mostrarmos que é possível. Foi a primeira vez que deu certo”, conclui Dani.

Em um momento de constante cortes no orçamento público para investimento em pesquisa, essa é uma notícia a se comemorar. E provar, apesar de nem ser necessário, que a ciência brasileira é incrível. Um orgulho para o país.

Acesse o estudo completo nesse link.

Cientistas realizando o transplante de útero. dr Dani Ejzenberg opera junto ao dr Wellington Andraus. Foto cedida por Dani Ejzenberg
]]>
0
Como funciona a doação de órgãos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/como-funciona-a-doacao-de-orgaos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/como-funciona-a-doacao-de-orgaos/#respond Fri, 06 Oct 2017 12:17:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1385 O tabu e a falta de informação prejudicam os números, e a quantidade de doações de órgãos realizadas acabam sendo inferiores às necessidades brasileiras. Segundo a ABTO, Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, hoje, no país, existem mais de 30 mil pessoas na fila à espera de um transplante.

De 2015 para 2016, o número de doações aumentou em 3,5%, chegando a 14,6 doadores para cada milhão da população. Mas atualmente, 43% das famílias brasileiras entrevistadas não autorizam a doação dos órgãos.

Apesar de não ser satisfatório, ainda somos o segundo país do mundo em números de transplantes realizados. Pesa nesse título o fato de sermos um país populoso também.

Uma questão muito importante para um país ao legislar a respeito, é definir se a doação será automática ou não. A doação automática, chamada de presumida, implica que se a pessoa atende às condições necessárias à doação, ela será automaticamente uma doadora. E deverá deixar por escrito o desejo de não o ser.

Já a doação não presumida implica que a pessoa só será doadora de houver uma permissão para isso. No Brasil, a permissão deve vir da família. Por isso, é importante deixar esse desejo explícito, ou registra-lo em um documento como o testamento vital ou o codicilo, registrados em cartório. Não haverá valor jurídico, já que sua família acabará decidindo no final das contas, mas é uma ferramenta para deixar seu desejo público.

A lei brasileira previa a doação presumida (automática) até 2001. A partir de março de 2001, com a lei nº 10.211, ela passou a depender da autorização da família. A mudança teve como pano de fundo o dilema enfrentado pelos médicos, que ficavam em uma situação delicada no trato com a família, e judicialmente, já que aconteceram casos de processos por familiares descontentes com a doação realizada com fundamento na lei da doação automática.

As condições para a doação de órgãos são simples. A pessoa deve ter morrido de morte encefálica. Em uma linguagem leiga, é a morte cerebral. A morte encefálica é a definição legal de morte e refere-se à total e irreversível parada de todas as funções do cérebro.

Se ela teve um infarto, não será possível retirar seus órgãos vitais para doação, porque eles já não estarão mais funcionando. Com a morte cerebral, o coração continua bombeando sangue aos órgãos vitais, possibilitando sua “reciclagem”. O pulmão, o fígado, o pâncreas e o coração devem ser retirados antes de uma parada cardíaca.

Essa cena não é muito acolhedora, o que dificulta a decisão da família no momento da morte de um parente. Ainda mais considerando que muitos jovens morrem de morte encefálica, como em acidentes de trânsito e AVCs repentinos, aumentando ainda mais o trauma do momento.

Isso significa, na minha opinião, que deixar para a família decidir na hora prejudica muito a doação de órgãos e aumenta a pressão em cima da família, que já está vivenciando um trauma gigantesco.

É importante ressaltar que o coração ainda bate algumas horas após a morte encefálica com ajuda de um ventilador artificial que fornece oxigênio. Por isso, o pedido de doação acaba soando apressado, para aproveitar essa pequena janela de oportunidade.

Em janeiro, a França mudou sua legislação para automática, como relatado nesse post aqui. Os franceses agora são considerados doadores automáticos. Caso não queiram, precisam oficialmente rejeitar essa opção. O procedimento é fácil, basta assinar um formulário online, em um Cadastro Nacional de Recusa. Também é possível deixar uma carta por escrito aos amigos e médicos.

Mitos

Não há como confundir uma morte encefálica com o coma. Quando o paciente está em coma, é possível identificar atividade cerebral e ele pode respirar quando o ventilador artificial é removido. Além disso, seguem alguns mitos listados na página da ABTO, com fonte da UNOS – United Networks for Organ Sharing:

1) Se os médicos do setor de emergência souberem que você é um doador, não vão se esforçar para salvá-lo.
Se você está doente ou ferido e foi admitido no hospital, a prioridade número um é salvar a sua vida. A doação de órgãos somente será considerada após sua morte e após o consentimento de sua família.

2) Quando você está esperando um transplante, sua condição financeira ou seu status é tão importante quanto sua condição médica
Quando você está na lista de espera por uma doação de órgão, o que realmente conta é a gravidade de sua doença, tempo de espera, tipo de sangue e outras informações médicas importantes.

3) Há necessidade de qualquer documento ou registro expressando minha vontade de ser doador.
Não há necessidade de qualquer documento ou registro, apenas informe sua família sobre sua vontade de ser doador.

4) Somente corações, fígados e rins podem ser transplantados.
Órgãos necessários incluem coração, rins, pâncreas, pulmões, fígado e intestinos. Tecidos que podem ser doados incluem: córneas, pele, ossos, valvas cardíacas e tendões.

5) Seu histórico médico acusa que seus órgãos ou tecidos estão impossibilitados para a doação.
Na ocasião da morte, os profissionais médicos especializados farão uma revisão de seu histórico médico para determinar se você pode ou não ser um doador. Com os recentes avanços na área de transplantes, muito mais pessoas podem ser doadoras.

6) Você está muito velho para ser um doador.
Pessoas de todas as idades e históricos médicos podem ser consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica no momento da morte determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados.

7) A doação dos órgãos desfigura o corpo e altera sua aparência na urna funerária.
Os órgãos doados são removidos cirurgicamente, numa operação de rotina, similar a uma cirurgia de vesícula biliar ou remoção de apêndice. Você poderá até ter sua urna funeral aberta.

8) Sua religião proíbe a doação de órgãos.
Todas as organizações religiosas aprovam a doação de órgãos e tecidos e a consideram um ato de caridade.

10) Há um verdadeiro perigo de alguém poder ser drogado e quando acordar, encontrar-se sem um ou ambos os rins, removidos para ser utilizado no mercado negro dos transplantes?
Essa história tem sido veiculada pela Internet. Não há absolutamente qualquer evidência de tal atividade ter ocorrido.

Transplante em vida

Os órgãos e tecidos que podem ser doados em vida são:

PÂNCREAS: parte do pâncreas (em situações excepcionais).

RIM: doa-se um dos rins (é a doação mais freqüente intervivos);
MEDULA ÓSSEA: pode ser obtida por meio da aspiração óssea direta ou pela coleta de sangue periférico;
FÍGADO: parte do fígado pode ser doada;
PULMÃO: parte do pulmão (em situações excepcionais);

Espero que essas informações tenham sido úteis.

Para saber como funciona a doação do corpo para ciência e ouros fins, leia mais na categoria “O que você quer ser quando morrer”, do blog.

 

 

 

]]>
0
Serviço de realidade aumentada japonês oferece encontros virtuais no pós-morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/08/31/servico-de-realidade-aumentada-japones-oferece-encontros-virtuais-no-pos-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/08/31/servico-de-realidade-aumentada-japones-oferece-encontros-virtuais-no-pos-morte/#respond Thu, 31 Aug 2017 11:56:55 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/08/ar-grave-top-1-180x135.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1348 A indústria funerária japonesa não para de nos surpreender. Com uma taxa de mortalidade maior do que a média global, esse mercado tem se reinventado. A taxa do Japão é de 0,94% enquanto a global é de 0,84%, e se aproxima da brasileira.

A última novidade no Japão é um serviço de realidade aumentada, a mesma tecnologia do Pokémon, para o setor funerário. O serviço custa US$4,50 dólares por mês e permite a visualização de fotos e vídeos do morto querido nos locais designados. Antes de morrer, é possível deixar essas mensagens gravadas e designar os locais onde elas poderão ser encontradas. É uma espécie de caça tesouro com um fantasma muito querido.

Outra novidade: uma empresa japonesa vai começar a alugar robôs para celebrar velórios. Pepper, como é chamado, oferece seus serviços por volta de R$ 1.430 e é considerado uma alternativa mais barata aos sacerdotes tradicionais. Pepper já é usado para outros fins, como ser mentor de prisioneiros em reabilitação. Lançado em 2015, dez mil unidades do Pepper já estariam em uso no mundo. É um robô que se destaca por identificar expressões humanas.

A cremação é a opção predominante no Japão e chega a gerar filas de dias para o uso dos fornos. É a justificativa para a existência de hotéis para mortos, como o Lastel Hotel, no sul de Tóquio, com 18 quartos refrigerados. Há espaço para os parentes e amigos velarem o corpo a noite toda, se quiserem. Sobre rituais no Japão, sugiro o filme “A Partida”. Já escrevi sobre ele aqui. 

Por quantos anos deveríamos viver?

Em diversos países, funerais ganham a dimensão de um casamento. Nos Estados Unidos, há shows de música ao vivo, buffet, santinhos, vídeos shows com fotos e depoimentos, e um tempo longo para o preparo do evento. Essa rapidez no enterro é algo bem típico do Brasil. Os europeus também costumam estranhar nossa pressa para enterrar o morto, não dando tempo de nenhum preparativo. Acabamos engolindo tudo como se fosse automático, como se não houvessem opções de produtos e serviços, dentro da justificativa de que não podemos “mercantilizar a morte”. Mas é claro que ela já é um mercado e falar abertamente sobre ele só nos trará benefícios.

Leia mais em: o que você quer ser quando morrer

A indústria japonesa mobiliza cerca de 20 bilhões de dólares por ano. No Brasil, não dá dados oficiais do nosso mercado, mas uma estimativa de faturar cerca de 7 bilhões ao ano.

Além disso, no Japão, há uma conferência de três dias que ajuda os participantes a preparar seu próprio funeral. Eles escolhem caixões, urnas, compram as “ending notes”, um bloco de anotações destinado a últimos desejos. E decidem o que fazer com suas cinzas. Na própria conferência, há um balcão de empresas internacionais como a Celestis, que leva cinzas ao espaço em parceria com a NASA, ou um empresa que leva cinzas para o meio do mar. Também escutam exemplos de música, preparam lista de convidados e escrevem legados. Eu acho isso tudo incrível e estou organizando uma palestra nesse sentido. Para maiores informações, por favor mandar email ao mortesemtabu@gmail.com.

 

 

Entre memes e marketing, cemitério em Teresina brinca com o medo da morte

 

 

]]>
0
França muda radicalmente política de doação de órgãos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/10/franca-muda-radicalmente-politica-de-doacao-de-orgaos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/10/franca-muda-radicalmente-politica-de-doacao-de-orgaos/#respond Tue, 10 Jan 2017 12:59:28 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1233 Uma questão crucial ao legislar sobre a doação de órgãos é definir se a população será considerada doadora automática e deve se expressar contra caso não queira, ou o contrário. No Brasil atual, não somos doadores automáticos. Caso seja nosso desejo doar órgãos, devemos expressar essa vontade aos familiares e médicos. Mesmo assim, cabe à família a decisão final. Portanto, não temos autonomia real sobre essa decisão.

A França acabou de fazer justamente essa mudança. Desde 1 de Janeiro, os franceses são considerados doadores automáticos. Caso não queiram, precisam oficialmente rejeitar essa opção. O procedimento é fácil, basta assinar um formulário online, em um Cadastro Nacional de Recusa que atualmente possui 150 mil inscritos. Também é possível deixar uma carta por escrito aos amigos e médicos.

Uma diferença básica em termos de procedimentos é que a família do morto será avisada sobre a doação de órgãos e não mais consultada. Uma justificativa utilizada é que muitas famílias rejeitam a doação quando são consultadas (devido à consternação causada pela recente dor da perda) e depois se arrependem.

Matéria do portal “Big Think”, que inspirou o título desse post, diz que 22 pessoas morrem todo dia nos EUA à espera de um transplante de órgão e 119 mil nomes constam na lista de espera. Apesar de 95% dos americanos afirmarem apoiar a doação de órgãos, apenas 48% são realmente doadores.

Até 2001, nós, brasileiros, éramos doadores automáticos. A lei 10.211 desse ano colocou a permissão familiar como necessária para a doação. Por isso, a inscrição de doador ou não em documentos como CNH e RG deixaram de ter valor.

Não é uma discussão leviana. Por um lado, optar pela doação automática (ou presumida) eleva o número de doações e, por consequência, salva vidas. Por outro, os médicos afirmam ser importante respeitar a vontade dos familiares e sentem-se impotentes de assim fazê-lo com a lei de doação automática sem que o morto tenha se expressado contra. Nesse sentido, a doação automática pode colocar médicos em uma situação delicada. Não só no trato com a família, mas também juridicamente. Podem ser processados por uma família descontente com a doação realizada com fundamento numa lei de doação automática.

Há medos infundados em relação à doação. Como, por exemplo, achar que uma equipe de primeiros socorros não irá ressuscitar uma pessoa caso seja doadora. Tinha gente com medo de registrar a doação na CNH por causa disso. Imaginava-se que, em um acidente de carro por exemplo, os paramédicos o deixariam morrer para utilizar seus órgãos. Pura lenda urbana. Outra, é uma insegurança gerada na população de que, ao entrar no hospital para fazer uma cirurgia simples, poderia sair de lá com um órgão a menos.

Outro, é em relação à condição necessária para a doação: a morte encefálica. Numa linguagem leiga, a pessoa precisa ter sido diagnosticada com morte cerebral e o coração ainda estar funcionando (ele continua enviando sangue aos órgãos, como rim e fígado). A imagem de um órgão sendo retirado pulsando de um corpo não agrada quem está em pleno ápice do choque, e da dor, e não consegue imaginar um corpo amado sendo “corrompido”. É triste, mas é necessário encarar o fato de que aquele coração não vai servir para nada pulsando em um corpo sem cérebro. Moramos no cérebro e não no coração. Até a emoção vem dali. Se não for para o crematório ou para debaixo da terra, sua melhor utilidade será no corpo de outro alguém.

A doação automática evita esse tipo de situação, a de uma família tendo que confrontar essa imagem e ainda autoriza-la. Entendo a posição difícil dos médicos caso tenham que dizer não para uma família implorando para que, por favor, deixem o coração do meu filho em paz. Sim, ele salvará outras vidas, mas o momento da perda não racionaliza, não leva em consideração um bem maior. Por isso, vou arriscar uma opinião e dizer que as famílias não estão em condições para tomar essa decisão. É um fardo que poderia ser retirado com a doação automática. Deixar para que a lei seja o peso da razão em um momento delicado e foque nesse bem maior.

Saiba mais no site “Eu Salvo Vidas” e na “ABTO – Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos”.

]]>
0
Querida, virei um LP https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/01/querida-virei-um-lp/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/01/querida-virei-um-lp/#respond Mon, 01 Aug 2016 16:49:14 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1043 Uma possibilidade pouco explorada para o destino das cinzas da cremação é prensá-las em um disco de vinil  -também conhecido como Long Play em inglês, por isso a sigla LP. A empresa inglesa “And Vinyly” é uma das mais conhecidas do ramo. O pacote básico conta com a produção de 30 discos e sai por £3000 libras. Cada disco dura 24 minutos, 12 de cada lado. Extras incluem ilustrações feitas sob encomenda, templates musicais criados para acompanhar uma gravação de voz e músicas originais desenvolvidas especialmente para o cliente. É possível ter seu vinil distribuído em lojas de LPs ao redor do mundo e oferecer apenas uma parte do corpo cremada (caso você prefira que o resto seja enterrado, por exemplo). A empresa também aceita animais.

E o que se grava no LP? Você pode escolher uma playlist de músicas, gravar um depoimento seu sobre a história da família, casos engraçados, um testamento falado ou escolher não gravar nada – para apenas escutarem o som produzido pelas cinzas do vinil passando pela agulha da vitrola.

A revista eletrônica AEON divulgou hoje (01) um vídeo sobre o fundador da “And Vinyly”, Jason. Ele conta ter crescido ouvindo histórias sobre como as cinzas de seu tataravô foram arremessadas ao mar, mas com o vento, acabaram pairando sobre o deck. Com seu avô a coisa foi parecida.

Jason se encheu do vento atrapalhando o destino das leves cinzas e fundou a “And Vinyly”. O vídeo mostra como o processo é feito – as cinzas são jogadas no vinil (um material plástico) antes dele ser prensado, e oferece momentos de reflexão:“O bom da morte é que ela faz você viver, te leva a tentar fazer o máximo com o que tem”.

Jason já pensa no que colocaria em seu próprio disco: uma mistura de músicas com depoimentos pessoais. E acha essa preparação benéfica. “É triste ouvir as pessoas dizerem que somente quando estão próximas da morte é que resolvem começar a realmente viver. Eu comecei a pensar que, talvez, se fossemos mais expostos à morte, ou a planejássemos um pouco antes, poderíamos ter uma vida melhor”, diz.

O disco teria uma função emocional e histórica: “É algo que sua bis-bis-bisneta poderá ver, ouvir, ler a capa, e aprender um pouco sobre você, sobre sua época”.

Opções curiosas de uso para as cinzas têm surgido. Em entrevista para a TV Folha, Mylena Cooper, do Crematório Vaticano, diz ter em mãos uma inovação: misturar cinzas a fogos de artifícios. Ainda há outras opções, como unir tecnologia com arte – ter um quadro pintado com suas cinzas e um QR-Code instalado na moldura direcionando para uma página na internet com sua biografia e vídeos, por exemplo, transformar cinzas em cristais ou diamantes e, claro, a  mais racional e útil de todas – doação do corpo para estudos. Veja como nesse link.

Leia mais sobre essas e outras opções na seção “o que você quer ser quando morrer”, do blog.

Atualização em 2 de agosto: a empresa “And Vinyly” me informou que aceita encomendas internacionais e pode enviar para o Brasil. É possível fazer o pedido pelo e-mail: theundertaker@andvinyly.com

]]>
0
Não morra, vire uma estrela https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/19/nao-morra-vire-uma-estrela/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/19/nao-morra-vire-uma-estrela/#respond Tue, 19 Jul 2016 15:44:51 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1027 Sempre olhei para o céu e achei engraçado o fato de podermos ver brilhar uma estrela que não existe mais. As estrelas mortas estão muito longe da Terra para serem vistas a olho nu, mas com a ajuda de um telescópio é possível avistá-las. “Se a estrela já desapareceu, como ela ainda está lá?”, pergunta a criança. Sim, existe uma explicação. É porque sua luz tá viajando tranquilamente pelo espaço vazio (ou seja lá do que for constituída a cama onde bailam os astros), mesmo depois de ela ter evaporado.

É ainda mais curioso saber que é possível “dar nomes” às estrelas. Dar o seu nome a uma estrela. De forma simbólica, claro. Não há posse legal envolvida e a Nasa não reconhece essa atividade, mas o “batismo” fica registrado no banco de dados da empresa que te vendeu o serviço e até em um livro de acesso público.

Essas empresas divulgam a nomeação como um presente original que pode ser utilizado para casamentos, nascimentos de bebês, Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia dos Namorados, etc. “Dê um presente original, nomeie uma estrela”, diz a “Online Star Registry” em seu site. É muito popular o uso como homenagem in memoriam. “Neste ano, imortalize o nome de alguém dando a uma estrela esse mesmo nome”, anuncia a “Global Star Registry”.

Há pacotes que incluem certificados com diversas molduras, pingentes gravados, mapa estrelar indicando a estrela nomeada, adesivo que brilha no escuro, opções para embrulhos e aplicativos para procurar a estrela no céu. Dar uma estrela de presente é querer dizer: “você agora é imortal. Mesmo depois da sua morte, continuará brilhando no céu, mesmo depois da morte da sua estrela, você continuará brilhando no céu. Seus netos e bisnetos poderão procurar por você lá em cima e de alguma forma se reconfortarem com esse pensamento”. Quando mamãe disser: “vovô virou estrelinha”, ela poderá mostrar qual estrela ele agora é, e se sentir mais verdadeira no uso da metáfora.

4 estrelas chamadas Trump

Há quatro estrelas com o nome Donald John Trump ou Donald J.Trump. Segundo uma matéria da revista americana “New Yorker”, elas foram registradas entre 1988 e 2007. Elaine Slope, uma funcionária do “International Star Registry” (Illinois – EUA), diz na matéria que uma delas é situada na constelação de Perseus, o herói mitológico grego que decapitou Medusa. Há uma Hillary Rodham Clinton na constelação Cassiopeia – nomeada em homenagem a uma rainha vaidosa da mitologia grega. “É interessante que Trump esteja na constelação de um herói e Hillary na de uma rainha”, diz Elaine na “New Yorker”. Só que Trump não deve querer parar por aí, daqui a pouco ele pede para chamar o planeta Terra de Trump.

Nos últimos 37 anos, essa empresa nomeou e registrou cerca de 2 milhões de estrelas. Eu conversei com Elaine, que me informou ter encontrado em seu banco de dados as seguintes celebridades brasileiras com estrelas registradas: Adriana Francesca Lima (constelação Gemini – Gêmeos), Jô Soares (constelação Horologium – o relógio), Pelé (constelação Canis Major – o cão maior), Antonio L. Fagundes (constelação Aquila – a águia), Ayrton Senna (possui duas estrelas na constelação Aquila – águia), Fernanda Nhanhinha Motta (Virgo – virgem), Paulo Coelho (Orion – o caçador mítico) e Giovanna Antonelli (Aquila – águia). As estrelas podem ter sido presentes ou compradas pela própria pessoa. A empresa possui o registro de diversas celebridades internacionais e publica seus certificados na página do Facebook da instituição.

Há uma página em português para vendas ao Brasil, com oferta de R$ 70,00 para o mês de julho. Elaine me esclareceu: “Astrônomos não utilizam os nomes que atribuímos às estrelas. A International Astronomical Union – IAU é o único órgão que nomeia objetos celestes para uso científico e isso é feito com pouca frequência”.

O objetivo de um presente como esse seria o de honrar alguém especial. “Deveria ser um presente lindo e duradouro. Acreditamos que as estrelas não pertencem apenas à comunidade científica, mas sim a todos”, diz Elaine.

Há outras empresas no ramo, mas Elaine defende ser a única com uma listagem pública dos nomes das estrelas e suas coordenadas e oferecer qualidade e experiência: “Estamos nesse negócio há 35 anos e somos membros do Better Business Bureau com um rating A+”.

“Online Star Registry” oferece o registro de uma estrela por US$ 33 dólares. Disponibilizam pacotes de presente por US$ 54 – com certificado, cartinha, desenho da constelação da estrela e sugestões de presentes para datas especiais. Com o aplicativo do site é possível encontrar sua estrela no céu (não testei).

Como mais de uma empresa empreendeu por aí, é possível que a mesma estrela tenha mais de um nome. É um presente simbólico, não há posse legal envolvida. Uma empresa brasileira que oferece esse serviço é a suaestrela.com.br

À primeira vista, confesso que me parece pura vaidade. Mas pode ser um bom presente in memoriam. Se oferecer algum conforto no luto, tá valendo. O luto é dolorido demais para termos qualquer preconceito a respeito.

mobile
banner da “Online Star Registry”
]]>
0
Crematório transforma cinzas em joias para o Dia das Mães https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/05/07/crematorio-transforma-cinzas-em-cristais-para-o-dia-das-maes/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/05/07/crematorio-transforma-cinzas-em-cristais-para-o-dia-das-maes/#respond Sat, 07 May 2016 23:48:34 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=928 O que fazer com as cinzas após a cremação ainda é uma questão para muitas famílias. As alternativas mais exóticas são pouco divulgadas, como o envio de cinzas para o espaço (por meio de um serviço da Nasa e custa em torno de 5000 dólares), fogos de artifícios (vovô espalhado em Copacabana no reveillon), quadros com uma imagem escolhida (a técnica chama arte picto-crematória, eu já vi um lindo quadro com o “O Beijo”, de Klimt), diamantes feitos com o carbono do corpo humano, plantar uma árvore, confeccionar um disco de vinil com uma empresa muito doida, ou não cremar o corpo e doá-lo para ciência, para uma exposição sobre o corpo humano, mumificar, etc. Leia mais sobre essas e outras opções na secção O que você quer ser quando morrer, do blog. No post Como ocorre a cremação há um exemplo de um processo crematório no estado de São Paulo.

O Crematório Vaticano lançou uma proposta inovadora para esse Dia das Mães. No domingo (8), haverá um evento com um artesão especializado confeccionando peças de cristais fundidas com as cinzas da mamãe falecida. Uma forma de eternizar  a progenitora, mantê-la perto do coração simbolicamente, uma homenagem bonita. Imagino que muitas mães e avós sorririam com a possibilidade de virar uma joia depois da morte. Fica a dica.

A transformação de cinzas em diamantes já é uma técnica conhecida, mas muitas vezes ignorada pelo preço. Uma empresa que faz o serviço com diamantes é a Brilho Infinito. O Crematório Vaticano também produz diamantes. São usadas 300g de cinzas, levadas a um processo físico e químico para separar o carbono das cinzas. O carbono é submetido a altas temperaturas e pressão por 3 meses. O carbono vai se transformar em grafite e posteriormente, em diamante. A pedra vai aumentando de tamanho dependendo do tempo que permanecer no processo. Após esse tempo, é enviado para lapidação de acordo com o formato escolhido pela família.

Mylena Cooper, diretora do Crematório Vaticano, considera a alternativa do cristal mais barata e mais rápida. O cristal custa 600 reais e fica pronto em 1 mês. O diamante custa 20 mil e demora 3 meses. Mylena afirma ter patenteado o produto do cristal com as cinzas no Brasil. É possível escolher as cores e o formato do pingente ou optar por peças decorativas e esculturas de qualquer formato, como corações, anjos, animais, instrumentos musicais, etc.  A fusão se dá a 1.500 C, onde a peça é modelada. É possível escolher o tamanho também.  Como são usadas 20g de cinzas, a família pode fazer diversas peças (uma para cada filho, sobrinho, amigo, etc) ou dar outro destino para as cinzas restantes.

O Crematório Vaticano fica no Paraná (com filiais em Santa Catarina), mas envia os cristais e diamantes para toda a América Latina.

A autonomia sobre o próprio corpo é uma discussão que permeia diversas esferas e tem alcançado essa daqui: o que você quer ser quando morrer. Decidir sobre como deseja vivenciar o fim da vida, como gostaria de morrer, discutir um testamento vital, ou mesmo desabafar sobre o luto no maior confessionário dos nossos tempos, o Facebook.

 

SONY DSC
diamante produzido pelo Crematório Vaticano
banner_brilhoinfinito_sobreabrilho
Diamante produzido pela Brilho Infinito
SONY DSC
Pingentes de cristal com cinzas, produzidos pelo Crematório Vaticano

 

SONY DSC
escultura de cristal confeccionada com cinzas – produzido pelo Crematório Vaticano

 

 

 

 

]]>
0
obituários dos leitores https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/17/obituarios-dos-leitores/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/17/obituarios-dos-leitores/#respond Tue, 17 Nov 2015 12:21:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=748 Em post recente, publiquei sobre “como escrever seu próprio obituário”. Um artigo inspirado na escrita de obituários como um exercício de pensar na finitude e na possibilidade de refletir sobre uma vida ao imagina-la de “trás para frente”.  Convidei leitores a me enviarem os seus. Seguem obituários de leitores do blog Morte sem Tabu, com a devida autorização.

“Uma pessoa banal e extraordinária

Minha vida pode ser dividida em 3 ou 4 partes. A primeira vai do nascimento aos quase 30 anos, quando fui o último de 3 filhos a sair da casa dos pais, embora o único a fazer isso ainda solteiro. Nascido nos libertários anos 60, até então, esse foi meu grande sonho e realizá-lo motivo de amadurecimento e orgulho por toda a vida. Dez anos depois, casei-me. Fui feliz e infeliz. Do casamento nasceu minha única filha, e a experiência da paternidade e seu amor, até por sua duração, foi a mais importante da minha vida. Sensível, intenso e bem-humorado, na maturidade desenvolvi grande articulação verbal e facilidade em socializar, o que se não me tornou popular ou me trouxe ganhos financeiros, me tornou uma pessoa querida e um personagem certamente marcante. Tive poucas mulheres e poucos amigos. Um deles, um grande amor que durou cerca de trinta anos e quando o perdi, mais que a tristeza, agradeci a Deus pelo privilégio de tê-lo tido. Sempre vivi o presente, dádiva da inteligência. E embora tenha vivido sob razoável conforto e tido realizações pessoais, sempre sofri de um inexplicável desassossego que muitas vezes, me foi penoso. Um fato marcou a mudança para a terceira e última fase dessa existência: tornei-me espírita. A identificação e crença absoluta nessa religião pacificou meu íntimo. Ajustou meus atributos e abriu caminho para uma serenidade que foi, sem dúvida, uma versão da felicidade. Vivi até o fim com a convicção de que, de certa forma, cumpri o que me programei a cumprir. Eu não sou este, que aqui esteve e deixou de estar. Sou aquele que sempre será, que veio e voltará até não precisar mais vir”.

José Godoy

O fardo da vida

“Livrei-me do fardo da vida!!! Enquanto vocês carregam o peso das dúvidas e incertezas, eu durmo o sono eterno da morte, descanso no leito frio do nada, tranquilo porque sei que muito em breve vocês estarão cá comigo… Que Deus guarde minha memória.   S.V.K.B.

Fui cedo, e tarde ao mesmo tempo. Aguentei o fardo de carregar a vida e a dureza de ser livre, pudera eu, em minha vida, não ter opções de escolha, assim, certamente, não haveria de ter sofrido tanto, pois, sempre que escolhemos determinados caminhos ponderamos se não seria mais coerente ter escolhido algum outro, já passado, acabado. Não fui vítima de meus desejos, consegui suportá-los o máximo que pude, embora fugir deles me trouxesse imensa tristeza, mas não, não cairia na tentação, não teria a capacidade de trair meus princípios. Amei poucas pessoas e, por incrível que pareça, não faço parte dessa lista, embora não me amasse, também não me odiei, ora, como vou amar ou odiar alguém que não conheço? Pensando bem, não sei mais se amei alguém, de repente amei todos. Só Deus sabe. Fiz o que queria fazer, demorei um pouco para perceber que a vida passava, mas, quando me dei conta vivi, no sentindo pleno da vida, não me importei com o que os outros pensavam, ouvi música alta, fui a shows de rock, tatuei quase o corpo todo, me apaixonei, casei, fiz amor (isso vai fazer falta), tomei minhas cervejas (também vai fazer falta), assisti muito futebol, fiz judô, cursei filosofia, dei aula (me orgulho de ter sido professor, enquanto um de meus discípulos estiver passando pelo instante da vida minha memória estará presente e eu serei ‘o Professor’), plantei árvores, tive filhos, escrevi livros, voltei ao passado e me dei à liberdade de sorrir lembrando dos momentos ao lado de meu velho pai, de minha linda mãezinha, de meus incríveis irmãos e de nossos cãezinhos, também chorei a saudade de não ter mais meus pais e dividi essa dor com meus irmãos, fomos o porto seguro um do outro por muitas vezes, as únicas coisas que me entristeço de não ter conseguido fazer é descobrir se Capitu traiu ou não Bentinho e se alguém chegou a ser um Super Homem, como houvera clamado o profeta Zaratustra. Assim fui vivendo, caminhando em direção aquela que me esperava para dançar comigo a música eterna do fim, composta no mais absoluto silêncio, tendo como palco a mais fria lápide. Mesmo em meio ao pessimismo que me cercava fui feliz, feliz porque sempre soube de meu fim e porque aproveitei o máximo que pude desse pequeno instante, presente no nada, em que eu ganhei existência. Enfim, dúvidas, incertezas, saudades, já não fazem mais parte de minhas preocupações, não carrego mais esses pesos em minhas costas, estou livre deles, finalmente livre. O que quero agora é apenas dormir meu sono tranquilo por toda a eternidade, sem ser incomodado, afinal, já saí de cena, não tenho mais a dura obrigação de viver. Caro colega, bela amiga, logo você terá o mesmo privilégio, logo me fará companhia, tenha certeza disso. Expirei em uma bela tarde, pelo menos para mim era bela, aos 87 anos (se fui antes, fui contrariado, se fui depois, certamente fui enfadado). Deixei minha linda esposa Jaqueline e meus belos filhos, Arthur e Luiza, além do meu cãozinho e amigo, Coragem. Esse fui eu, Sergio Vinícius Kubaski Borges, nascido a 23 dias do mês de julho de 1990, se real ou apenas ilusão, não sei, nem me importa saber, só sei que agora voltei para casa. Que Deus me guarde e preserve minha memória. Obrigado por tudo!!!

Sergio Vinícius Kubaski Borges, Ponta Grossa, 11 de novembro de 2015

Contemporaneidade e transitoriedade 

“Parece fácil, mas é muito difícil valorizar cem por cento a magia de se estar vivo, de sentir-se vivo. Às vezes chego a me beliscar. Temos olhos e achamos que a natureza não faz mais que a obrigação. Temos pernas e achamos que os automóveis são mais importantes. Temos braços, mas não sabemos onde colocar as mãos. Temos emoções e achamos que só servem para nos trazer aborrecimentos…

Zilhões de pessoas já passaram pela Terra e agora nós somos a bola da vez. Ulalá!, é um privilégio ser testemunha dos tempos, presenciar o aqui e o agora, olhar para o passado, antever o futuro, surfar no presente. O Universo é todo nosso neste precioso momento, todos os mistérios, todo o infinito, todas as dúvidas, todas as certezas são nossas agora, agorinha mesmo. Pegue o que é seu.

Mais de sete bilhões de pessoas estão escrevendo a sua crônica neste exato momento, enquanto milhares pingam pontos finais todos os santos dias na cartilha da existência.

Tudo pode acontecer neste exato momento, desde o fim do mundo, até o fim do nosso mundinho. Temos que dançar conforme a música que a história toca no momento. Por outro lado, é um grande desafio tecer sentidos no tempo, que escorre em cada batida do coração. Tudo podemos agora, agorinha mesmo. É a nossa vez de realizar sonhos, fazer a diferença, deixar alguma marca, para não passarmos em brancas nuvens.

Porque a sociedade é uma colmeia que perpetua a vida, enquanto nós, meros operários, vamos morrendo como zangões, após cumprir as nossas pequenas ou grandes missões. As padarias continuarão vendendo pão quente a toda hora para outras bocas.

Contemporaneidade e a transitoriedade, companheiras que se separam num piscar de olhos. Somos e passamos. Vida e morte até o suspiro final. Respire fundo, então, que o tempo é todo seu neste mágico momento. É a sua hora de amar, de odiar, de dizer sim, de dizer não, de agradecer, de maldizer, de pedir perdão, de olhar para a lua, as estrelas, que encantaram nossos antepassados e hoje nos encantam. Quando eu me for, peço que deem um abraço bem apertado na vida por mim, e digam que eu sempre a amei, apesar de tudo e acima de tudo. Por enquanto, estou vivo e agradeço este presente que recebi não sei de quem.

De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? Viver bem é a melhor resposta. Podem me enterrar em paz quando chegar a minha vez”.

Jaime Pereira da Silva – 63 anos, jornalista (SP/SP).

O João

“Aqui jaz João. João de quê? Só João, puro? Tipo João Paulo, João Pedro? Falô, Joãozinho, então. Teve medo a vida toda. Medo de apanhar na escola, medo da mãe, medo de não ter dinheiro, medo de falar em público, medo de abrir uma consultoria, medo de andar de moto, medo de ficar velho. Pelo menos perdeu o medo de ir pro Inferno, o que na atual condição é uma puta vantagem. Já não teme mais nada”.

]]> 0 Como escrever seu próprio obituário https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/09/como-escrever-seu-proprio-obituario/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/09/como-escrever-seu-proprio-obituario/#respond Mon, 09 Nov 2015 13:49:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=733 Há diversas razões para escrever seu próprio obituário. Alguns cursos de jornalismo e de escrita criativa o indicam como um exercício.

Terapias e coaching também usam o obituário como uma forma de procurar compreender como se deseja viver a vida.

O portal legacy.com, um banco de dados mundial de obituários, que distribui textos a grandes veículos e tem 37 milhões de visitantes ao mês, fez um artigo com dicas. Um dos motivos colocados é: “começando pelo fim – o que você gostaria que seu obituário dissesse – pode ajudar na compreensão do que você precisa fazer na vida para alcançar seus objetivos”.

O site menciona ser cada vez mais comum as pessoas envolverem-se na escrita de seu próprio obituário. Hoje em dia, um obituário não precisa ser selecionado por um jornal, ele pode ser livremente publicado em blogs ou redes sociais.

Culturalmente, os brasileiros tendem a achar que falar ou pensar sobre a morte é um mau agouro. Se é seu caso, desprenda-se desse pensamento antiquado e vamos em frente. Convido o leitor a escrever o seu e me encaminhar no e-mail do blog (mortesemtabu@gmail.com).

O médico e psiquiatra João Augusto Figueiró diz usar esse exercício em seu consultório e considera a reflexão sobre a finitude e a transitoriedade muito benéfica. “Isso dá uma reordenada na vida da pessoa, no que ela está fazendo. Na medida em que você tem essa consciência, você altera a forma como vive o dia a dia. Para os filósofos gregos antigos, essa reflexão era fundamental para o que eles chamavam de uma vida virtuosa. É uma vida que tenha sido vivida integralmente, até o último momento. Já passei esse exercício em terapia. É uma questão que está sempre presente no meu dia a dia”, afirma Figueiró.

Ele imagina que vai morrer aos 90 anos e usa essa data como um horizonte para planejar sua vida e projetos. “ E o que eu quero ser com 90 anos? Um velhinho sábio, que viva uma boa vida, em harmonia consigo mesmo e com os outros, praticando o bem comum. Eu brinco que eu quero que escrevam no meu obituário caso eu morra antes do 90: Fui, mas contrariado”.

Margalit Fox, do “New York Times” vê a escrita de um obituário como a ação de “resolver o mistério de como uma vida foi vivida”. Ela busca entender a trajetória de uma vida como um mistério, buscando o porquê determinadas ações foram tomadas, como a pessoa percorreu de A para B e depois para C. Margalit também diz pensar sobre como as pessoas incorporaram a era em que viveram e o quanto são produtos do livre arbítrio ou do destino puramente cego.

Já a escritora de obituários da revista “The Economist” prefere não pensar em cronologias, mas sim em encontrar a essência de quem era aquela pessoa e o que era realmente fundamental para ela. Outro jornalista do “New York Times”, Bruce Weber, diz oferecer uma entrevista ao seu “personagem”, quando está escrevendo obituários de pessoas ainda vivas. Leia mais no post: “Obituários: resolvendo o mistério de uma vida”.

Essa preocupação me parece ser fruto de uma cultura diferente da brasileira, pois esses veículos internacionais dedicam muito mais espaço e atenção a obituários do que estamos acostumados a ver aqui.

Abaixo, listei alguns pontos que podem ser considerados na escrita do seu obituário. Eu usei como referência a leitura de obituários, entrevistas com jornalistas especializados em escrevê-los e o site legacy.com.

Dicas:

  • Tenha liberdade para se expressar. Tanto faz escrever em primeira ou terceira pessoa. Para alguns, é mais fácil olhar para a própria vida com um olhar mais distante, como o da terceira pessoa. Veja a forma mais fácil para você. Muitos obituários são bem humorados, então abuse do humor se for esse seu jeito de viver.
  • Quais são os fatos que definiram sua vida? Você pode iniciar pensando em datas importantes:
    • Nascimento e morte – em qual ano você imagina que vai morrer?
    • Formação: Qual foi a área de estudo escolhida? Qual faculdade fez, em que ano se formou ou se não chegou a completá-la e por quê.
    • Datas marcantes na carreira – como mudanças de emprego e prêmios (ou promoções).
  • Traumas: morte de alguém muito próximo, demissão, venda de imóveis por crise financeira, traição, acidentes de carro, e como isso te impactou – se acabou acionando alguma mudança de rumo ou de comportamento.
  • Família e pessoas queridas: quantos casamentos, divórcios, filhos e netos você teve. Como eles se lembrarão de você? Você pode imaginar que tipo de depoimento eles dariam a um jornalista que está escrevendo seu obituário. Grandes amigos também são inclusos aqui.
  • Trabalho voluntário e pertencimento a clubes ou a grupos sociais: se participou de algum movimento, causa, ONG, etc. Você pode mencionar ter doado uma parte do seu dinheiro para alguma instituição após a morte, ou mesmo pertences como livros, móveis, CDs, LPs, roupas, etc.
  • O que te torna único: hobbies ou interesses particulares: lugares que visitou, esportes que praticou, se colecionava alguma coisa, hábitos, paixões, expressões favoritas, coisas que te traziam alegria ou um sentimento de preenchimento, de realização. Essas informações, que tornam você único, são muito valorizadas em obituários, porque são a parte mais saborosa do texto. No fundo, gostamos de ver o que fazia outras pessoas felizes e as tornavam singulares. São os “detalhes” que mantêm uma pessoa viva na memória.
  • Fatos históricos: a vida das pessoas também é moldada pelos fatos ocorridos enquanto viveu, como guerras, crises, políticas econômicas, mandatos políticos. Pode-se abordar como um acontecimento histórico impactou a sua vida.
  • O que te define? Alguns veículos indicam um adjetivo no título. Algo que as pessoas que te conheciam identifiquem como uma característica própria sua. Por exemplo: serero, bem humorado, pioneiro, audacioso, divertido…
  • Causa da morte: do que você imagina que vai morrer? Como e onde? É importante indicar se você prefere que a causa da sua morte seja divulgada ou permaneça sigilosa.
  • Último desejo: você também incluir suas “últimas palavras”. Aqui estou romanceando um pouco, mas há obituários que incluem esse tipo de informação, como dizer: “antes de morrer, Maria pediu que seu cachorrinho fosse levado até o hospital para uma despedida”.
  • Funeral: haverá um velório? Sim ou não e onde. Também é possível mencionar se o corpo será cremado ou enterrado, ou doado para a ciência. Algumas famílias gostam de indicar a doação de órgãos.
  • Considerações finais: você pode usar seu obituário para inspirar o leitor com uma história pessoal, contar lições aprendidas na vida, ou enviar uma despedida aos familiares e amigos. Agora, com o Facebook, o obituário pode ser publicado em sua página, da forma como desejar. Essa escrita também pode ser vista apenas como um exercício e não ter compromisso algum em um dia vir a público. Se você for jovem, pode usá-lo para “prever” seu futuro e acompanhar seu depoimento conforme os anos passam. Mais do que prever o futuro, pode ajudar a moldá-lo e a fazer acontecer.
]]>
0