O cuidar de crianças em risco de morte: sobre o hospice infantil da Santa Casa de SP
“Eu perguntei, ah, meu Deus do céu, ai, por que tamanha judiação…” (escute a música aqui)
Quando eu fui embora de uma visita ao hospice infantil da Santa Casa, o palhaço Ziriguidum cantava e tocava o refrão de Asa Branca (de Luiz Gonzaga). Era a comemoração do Dia das Crianças, animada pela Operação Conta Gotas.
Uma festa para pacientes de 0 a 13 anos, com doenças potencialmente mortais. Alguns inconscientes, outros em cadeiras especiais para paralisias e certas doenças raras que fazem com que o corpo de uma criança, uma suposta “máquina” nova e cheia de vida, sucumba ao mero toque (como é o caso da epidermólise bolhosa e a fibrose cística – esses pacientes usavam máscaras devido ao sistema imunológico fragilizado). Os familiares, eufóricos com a animação da festa, repetiam com Ziriguidum: “Tamo junto!”, em tom de grito de guerra. Impossível não se comover.
Mas ali não se enfrenta uma batalha contra a morte. É uma batalha por qualidade de vida diante de um diagnóstico desanimador.
E o que é um hospice? É uma unidade de atendimento completo de cuidados paliativos. Também chamado de filosofia, por simbolizar um novo olhar na medicina e considerar o paciente como um ser humano, parte de um núcleo familiar e social, e não apenas como uma doença.
Na prática, isso significa oferecer um atendimento multidisciplinar ao paciente e sua família, com psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos, orientadores espirituais, enfermeiros e médicos, todos formados em cuidados paliativos e prontos para atender o paciente e sua família mesmo durante o processo de luto. Também se fala muito em oferecer tratamentos proporcionais às necessidades do paciente, respeitando suas vontades.
A filosofia hospice fortaleceu-se na década de 60, com a fundação do St. Christopher´s Hospice, na Inglaterra, que é considerado o marco do movimento do hospice moderno.
O termo é inspirado nas hospedarias de origem religiosa que tratavam dos peregrinos durante as cruzadas na Idade Média. Já o termo cuidados paliativos foi adotado pela primeira vez no Canadá. Deriva do latim pallium e significa cobrir com manto. É o manto protetor que simboliza o cuidar que faz parte do olhar proposto pelos médicos paliativistas. Em 2002, o termo foi adotado e definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Brasil, tudo isso é muito novo e engatinha em piso molhado. Sem apoio de políticas nacionais de incentivo para formação de profissionais, reconhecimento da área como especialização médica (é apenas uma área de atuação), ou mesmo ensinada na grade curricular das faculdades de medicina, como alguns médicos preferem defender. Nosso despreparo em cuidados paliativos levou o Brasil a ocupar a 42° posição (de 80 países), no último ranking da qualidade do morrer no mundo.
A diretora do hospice infantil da Santa Casa, a médica anestesiologista Ana Paula Souza Vieira Santos, sonha em ver a construção da unidade completa de seu hospice finalizada.
O prédio contará com leitos para internação e uma área focada em final da vida, com camas mirando um jardim. A construção já foi iniciada, mas devido à crise atual da instituição, não há previsão para finalizar a obra.
Por enquanto, Ana Paula trabalha em um ambulatório ao lado da pediatria da Santa Casa. Inaugurado em 2013, atende, em média, 12 crianças por dia. A unidade é mantida pela campanha “Cupom é Vida”, que destina recursos da Nota Fiscal Paulista à Santa Casa e por doadores espontâneos.
Ana Paula é formada em cuidados paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Fez um estágio no Helen & Douglas House, primeiro hospice de crianças, fundado na Inglaterra em 1982 e uma inspiração para a médica. “A equipe é essencial, um médico sozinho não faz paliativos. Só será bem feito se houver o trabalho interdisciplinar de todos que trabalham no hospice”, diz.
Toda a equipe de sua unidade é formada em pós-graduação em cuidados paliativos pela Santa Casa. Há organizações que também oferecem cursos na área, como o Instituto Paliar e a Casa do Cuidar. Ana Paula diz que é mais difícil atrair profissionais para um hospice infantil, por ser mais complexo tratar de crianças do que de adultos.
“Primeiro porque o tratamento de cada faixa etária é muito diferente. Tratar de um bebê é completamente diferente de tratar de uma criança de 3 anos e de um adolescente de quinze. O jeito de conversar, explicar e até mesmo de examinar, será diferente. Em segundo lugar, quando falamos de cuidados paliativos em adultos, pensamos em doenças demenciais como Alzheimer, ou câncer, insuficiência cardíaca e hipertensão. Aqui, temos síndromes raras, debilitantes e agressivas”, comenta. Por serem raras, há menor conhecimento sobre elas, demandando mais estudo por parte dos profissionais.
Outra questão é que seus pacientes não têm autonomia. Por serem crianças, as decisões são tomadas pelos pais. “Onde ocorre mais distanásia na medicina é na pediatria”. Distanasia é o prolongamento da vida a qualquer custo, mesmo que signifique um maior desconforto e dor ao paciente, sem melhoras no prognóstico. Os profissionais de saúde também teriam receio de serem processados pelos pais, desesperados com a morte de um filho.
Ana Paula vê ainda mais um desafio: “se você imaginar que um adulto já não consegue acesso a todas as medicações que seriam adequadas, como a morfina – que não é fácil de conseguir, imagina uma criança? Boa parte das medicações não foram testadas em crianças e por isso não podem ser usadas. Outra coisa, alguns comprimidos vêm com a dose extremamente alta e por isso não podem ser usados em crianças, que recebem dosagem de acordo com o peso. A Santa Casa tem uma farmácia de produção que transforma remédios sólidos em líquido (como a morfina), mas há os que não podem ser divididos, macetados ou liquidificados. A maioria é de liberação cronogramada, por isso não podem ser quebrados”.
Uma mãe em luto
Elenita Batista Farias, 34, estava na festa com seu filho de 1 ano e 7 meses, completamente saudável. Sua filha, Maria Eduarda, foi diagnosticada com um câncer no cérebro inoperável com 1 ano e 5 meses. Fez 11 cirurgias, quimioterapia e radioterapia até ser encaminhada ao hospice da Santa Casa para receber cuidados paliativos. Morreu no Dia das Crianças de 2013, aos 6 anos, atendida pelo hospice. Desde então, Elenita continua frequentando o hospice para atendimentos psicológicos. Engravidou de novo logo após a morte da menina.
Inicialmente, Elenita ia toda semana e sentia-se amparada pelos profissionais que acompanharam sua filha nesses últimos anos de vida. Hoje, vai uma vez por mês para fazer consulta com a psicóloga. O acompanhamento no luto é uma característica dos cuidados paliativos. “Só tenho o que agradecer, porque eles me ajudaram bastante, os cuidados paliativos ajudam não só o paciente, mas a família também. Eles me passaram uma força a mais para suportar tudo isso. Agora que ela se foi, no luto, eles ainda me ajudam muito. Quando engravidei do meu segundo filho, eu passei por alguns problemas de saúde e a doutora Ana Paula me trouxe para cá e me ajudou. Tudo o que eu preciso e que está ao alcance dela, ela faz. Não tenho nem palavras para explicar o quanto eu sou grata à essa equipe. No dia que minha filha morreu, num sábado, e ainda feriado, 22h30 da noite, a psicóloga veio na hora me apoiar”.
Aguardando o transplante do filho de um ano
Shirley está ciente das perspectivas e dos riscos da doença de seu filho Arthur, de 1 ano e 5 meses. Abraça o bebezinho vestido de palhaço, “eu tenho fé”, diz.
Com insuficiência renal crônica, Arthur precisa de um transplante de rim. Enquanto espera, é atendido por essa unidade de cuidados paliativos. Sua mãe, de 25 anos, operadora de caixa, sofreu muito até achar o diagnóstico de seu bebê. Os médicos dos ambulatórios públicos que procurou diziam que o bebê chorava devido à cólica e consideravam uma irresponsabilidade dela levá-lo a um hospital.
Shirley teve que pagar uma consulta particular para ser atendida por um médico que fizesse exames adicionais no neném. Após o diagnóstico, foi encaminhada para os cuidados paliativos da Santa Casa e orientada a ir correndo, pois seu filho estava à beira da morte, como disseram. Hoje, Arthur faz diálise em casa. “Adoro estar aqui. A gente vem toda sexta-feira, passa na médica, na fisioterapia, na fonoaudióloga, na nutricionista… eu passo pela psicóloga e pela assistente social. É uma benção”, beija o menino e sorri para a foto.
Veja debate na TV Folha com Ana Paula Santos – diretora do Hospice Infantil na Santa Casa. Link: Morre-se mal no país, dizem médicas. Veja debate sobre cuidados paliativos
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