obituários dos leitores
Em post recente, publiquei sobre “como escrever seu próprio obituário”. Um artigo inspirado na escrita de obituários como um exercício de pensar na finitude e na possibilidade de refletir sobre uma vida ao imagina-la de “trás para frente”. Convidei leitores a me enviarem os seus. Seguem obituários de leitores do blog Morte sem Tabu, com a devida autorização.
“Uma pessoa banal e extraordinária
Minha vida pode ser dividida em 3 ou 4 partes. A primeira vai do nascimento aos quase 30 anos, quando fui o último de 3 filhos a sair da casa dos pais, embora o único a fazer isso ainda solteiro. Nascido nos libertários anos 60, até então, esse foi meu grande sonho e realizá-lo motivo de amadurecimento e orgulho por toda a vida. Dez anos depois, casei-me. Fui feliz e infeliz. Do casamento nasceu minha única filha, e a experiência da paternidade e seu amor, até por sua duração, foi a mais importante da minha vida. Sensível, intenso e bem-humorado, na maturidade desenvolvi grande articulação verbal e facilidade em socializar, o que se não me tornou popular ou me trouxe ganhos financeiros, me tornou uma pessoa querida e um personagem certamente marcante. Tive poucas mulheres e poucos amigos. Um deles, um grande amor que durou cerca de trinta anos e quando o perdi, mais que a tristeza, agradeci a Deus pelo privilégio de tê-lo tido. Sempre vivi o presente, dádiva da inteligência. E embora tenha vivido sob razoável conforto e tido realizações pessoais, sempre sofri de um inexplicável desassossego que muitas vezes, me foi penoso. Um fato marcou a mudança para a terceira e última fase dessa existência: tornei-me espírita. A identificação e crença absoluta nessa religião pacificou meu íntimo. Ajustou meus atributos e abriu caminho para uma serenidade que foi, sem dúvida, uma versão da felicidade. Vivi até o fim com a convicção de que, de certa forma, cumpri o que me programei a cumprir. Eu não sou este, que aqui esteve e deixou de estar. Sou aquele que sempre será, que veio e voltará até não precisar mais vir”.
José Godoy
O fardo da vida
“Livrei-me do fardo da vida!!! Enquanto vocês carregam o peso das dúvidas e incertezas, eu durmo o sono eterno da morte, descanso no leito frio do nada, tranquilo porque sei que muito em breve vocês estarão cá comigo… Que Deus guarde minha memória. S.V.K.B.
Fui cedo, e tarde ao mesmo tempo. Aguentei o fardo de carregar a vida e a dureza de ser livre, pudera eu, em minha vida, não ter opções de escolha, assim, certamente, não haveria de ter sofrido tanto, pois, sempre que escolhemos determinados caminhos ponderamos se não seria mais coerente ter escolhido algum outro, já passado, acabado. Não fui vítima de meus desejos, consegui suportá-los o máximo que pude, embora fugir deles me trouxesse imensa tristeza, mas não, não cairia na tentação, não teria a capacidade de trair meus princípios. Amei poucas pessoas e, por incrível que pareça, não faço parte dessa lista, embora não me amasse, também não me odiei, ora, como vou amar ou odiar alguém que não conheço? Pensando bem, não sei mais se amei alguém, de repente amei todos. Só Deus sabe. Fiz o que queria fazer, demorei um pouco para perceber que a vida passava, mas, quando me dei conta vivi, no sentindo pleno da vida, não me importei com o que os outros pensavam, ouvi música alta, fui a shows de rock, tatuei quase o corpo todo, me apaixonei, casei, fiz amor (isso vai fazer falta), tomei minhas cervejas (também vai fazer falta), assisti muito futebol, fiz judô, cursei filosofia, dei aula (me orgulho de ter sido professor, enquanto um de meus discípulos estiver passando pelo instante da vida minha memória estará presente e eu serei ‘o Professor’), plantei árvores, tive filhos, escrevi livros, voltei ao passado e me dei à liberdade de sorrir lembrando dos momentos ao lado de meu velho pai, de minha linda mãezinha, de meus incríveis irmãos e de nossos cãezinhos, também chorei a saudade de não ter mais meus pais e dividi essa dor com meus irmãos, fomos o porto seguro um do outro por muitas vezes, as únicas coisas que me entristeço de não ter conseguido fazer é descobrir se Capitu traiu ou não Bentinho e se alguém chegou a ser um Super Homem, como houvera clamado o profeta Zaratustra. Assim fui vivendo, caminhando em direção aquela que me esperava para dançar comigo a música eterna do fim, composta no mais absoluto silêncio, tendo como palco a mais fria lápide. Mesmo em meio ao pessimismo que me cercava fui feliz, feliz porque sempre soube de meu fim e porque aproveitei o máximo que pude desse pequeno instante, presente no nada, em que eu ganhei existência. Enfim, dúvidas, incertezas, saudades, já não fazem mais parte de minhas preocupações, não carrego mais esses pesos em minhas costas, estou livre deles, finalmente livre. O que quero agora é apenas dormir meu sono tranquilo por toda a eternidade, sem ser incomodado, afinal, já saí de cena, não tenho mais a dura obrigação de viver. Caro colega, bela amiga, logo você terá o mesmo privilégio, logo me fará companhia, tenha certeza disso. Expirei em uma bela tarde, pelo menos para mim era bela, aos 87 anos (se fui antes, fui contrariado, se fui depois, certamente fui enfadado). Deixei minha linda esposa Jaqueline e meus belos filhos, Arthur e Luiza, além do meu cãozinho e amigo, Coragem. Esse fui eu, Sergio Vinícius Kubaski Borges, nascido a 23 dias do mês de julho de 1990, se real ou apenas ilusão, não sei, nem me importa saber, só sei que agora voltei para casa. Que Deus me guarde e preserve minha memória. Obrigado por tudo!!!
Sergio Vinícius Kubaski Borges, Ponta Grossa, 11 de novembro de 2015
Contemporaneidade e transitoriedade
“Parece fácil, mas é muito difícil valorizar cem por cento a magia de se estar vivo, de sentir-se vivo. Às vezes chego a me beliscar. Temos olhos e achamos que a natureza não faz mais que a obrigação. Temos pernas e achamos que os automóveis são mais importantes. Temos braços, mas não sabemos onde colocar as mãos. Temos emoções e achamos que só servem para nos trazer aborrecimentos…
Zilhões de pessoas já passaram pela Terra e agora nós somos a bola da vez. Ulalá!, é um privilégio ser testemunha dos tempos, presenciar o aqui e o agora, olhar para o passado, antever o futuro, surfar no presente. O Universo é todo nosso neste precioso momento, todos os mistérios, todo o infinito, todas as dúvidas, todas as certezas são nossas agora, agorinha mesmo. Pegue o que é seu.
Mais de sete bilhões de pessoas estão escrevendo a sua crônica neste exato momento, enquanto milhares pingam pontos finais todos os santos dias na cartilha da existência.
Tudo pode acontecer neste exato momento, desde o fim do mundo, até o fim do nosso mundinho. Temos que dançar conforme a música que a história toca no momento. Por outro lado, é um grande desafio tecer sentidos no tempo, que escorre em cada batida do coração. Tudo podemos agora, agorinha mesmo. É a nossa vez de realizar sonhos, fazer a diferença, deixar alguma marca, para não passarmos em brancas nuvens.
Porque a sociedade é uma colmeia que perpetua a vida, enquanto nós, meros operários, vamos morrendo como zangões, após cumprir as nossas pequenas ou grandes missões. As padarias continuarão vendendo pão quente a toda hora para outras bocas.
Contemporaneidade e a transitoriedade, companheiras que se separam num piscar de olhos. Somos e passamos. Vida e morte até o suspiro final. Respire fundo, então, que o tempo é todo seu neste mágico momento. É a sua hora de amar, de odiar, de dizer sim, de dizer não, de agradecer, de maldizer, de pedir perdão, de olhar para a lua, as estrelas, que encantaram nossos antepassados e hoje nos encantam. Quando eu me for, peço que deem um abraço bem apertado na vida por mim, e digam que eu sempre a amei, apesar de tudo e acima de tudo. Por enquanto, estou vivo e agradeço este presente que recebi não sei de quem.
De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? Viver bem é a melhor resposta. Podem me enterrar em paz quando chegar a minha vez”.
Jaime Pereira da Silva – 63 anos, jornalista (SP/SP).
O João
“Aqui jaz João. João de quê? Só João, puro? Tipo João Paulo, João Pedro? Falô, Joãozinho, então. Teve medo a vida toda. Medo de apanhar na escola, medo da mãe, medo de não ter dinheiro, medo de falar em público, medo de abrir uma consultoria, medo de andar de moto, medo de ficar velho. Pelo menos perdeu o medo de ir pro Inferno, o que na atual condição é uma puta vantagem. Já não teme mais nada”.