Marketing da morte
Quem trabalha com propaganda e marketing já sabe de cor os pilares para uma boa campanha. Alguns deles podem ser intuitivos e baseiam-se numa retórica bem construída.
O discurso é um espaço que orienta o pensamento e a imaginação para determinado rumo. Ele é acompanhado por uma sensação positiva de “insight”, satisfação, algo que se conecta com seu emocional por proporcionar o prazer de uma descoberta que a partir de então parecerá óbvia.
O filósofo Michel Foucault via o discurso como uma estrutura de poder internalizada. Seria um sistema de representações mentais, com regras, práticas e um conjunto de afirmações indicando o que tem sentido e o que não tem. O discurso oferece a linguagem apropriada para falar sobre determinado tópico, em um determinado contexto histórico.
O discurso ideológico governa a forma como um tópico pode ser significativamente discutido, implicando o que está excluído dele, aquilo que não pode ser falado ou feito.
De certa forma, ao defender um discurso nos tornamos dependentes de seu dogma pelo vazio que seu questionamento traz. Esse vazio é um abalo emocional que muitos não estão a fim de encarar. Apoiar-se em determinada retórica é dar algum sentido e prazer à uma vida que se depara com tanta vulnerabilidade, resultante de insegurança financeira, familiar e corporativa. Resultante da insegurança de uma forma geral, pois nem com a vida podemos contar, porque um dia ela acaba.
Não sabemos ao certo o quanto somos determinados por fatores biológicos e o quanto somos frutos de uma cultura (no sentido de uma rede de símbolos, significados e representações). O sociólogo Émile Durkheim diz que o indivíduo não tem capacidade de pensar como um ser isolado, mas somente como um membro social (determinismo social).
O mais provável é sermos definidos pelos dois numa relação mais complexa do que a mera submissão de um ao outro. No entanto, há algumas características que podem ser vistas como biológicas. O antropologista Maurice Bloch diz que uma delas é a habilidade nata de procurar sempre classificar o mundo ao redor. Nessa busca por classificação, fabricamos verdades.
Se verdades são construídas, elas têm o poder de servir tanto o “bem” quanto o “mal”. E é nessa distinção entre bem e mal, vítima e vitimizado que nos apegamos para dar algum sentido ao terror de ações violentas e brutais.
O historiador Leandro Karnal comenta, na palestra “Hamlet e o mundo como palco”, que uma característica fundamental desse personagem de Shakespeare é perceber a corrupção não mais como privilégio de um determinado grupo, mas como característica de todos os grupos e também presente nele mesmo. Ele encontrou a corrupção no leito de sua mãe (amante de seu tio) percebendo o que Leandro chama de “a microfísica do poder”. A corrupção começaria em nossos pequenos atos, como andar no acostamento, e teria como desdobramento máximo, a ponta do iceberg, a corrupção enraizada em um partido, em um governo, em um poder, em todos. Haveria uma ingenuidade em acharmos que se eliminando as pessoas que são “do mal” seremos felizes.
Leandro também diz que Hamlet é o primeiro homem a agir de acordo com a razão, seguindo seu eu racional e não a metafísica. “A glória e a tragédia do nosso tempo é exclusivamente a nossa crença profunda no eu. E o primeiro ser que proclamou o eu como elemento fundamental do mundo é Hamlet”, diz.
Horror voyeurístico
Thiago Sarkis*, psicanalista de Belo Horizonte já entrevistado no blog em “A Era dos Adictos”, considera um ciclo vicioso na nossa forma de reagir a ataques terroristas. Para ele, “estamos agindo apenas quando o que nos resta como ação é a guerra, ou seja, apenas quando só nos resta entrar no mesmo circuito de barbárie e carnificina no qual entraram os terroristas”.
Haveria outras possibilidades de reflexão, ação e escuta para minimizar eventos de extrema violência – não só os ataques terroristas, mas também a propagação assustadora de assassinos em massa, grupos como o Estado Islâmico ou mesmo a selvageria que parece fugir ao controle no cotidiano da sociedade.
“A possibilidade de minimização – não eliminação, porque isso não ocorrerá – de cenários como estes está bem antes da chegada de um rapaz de 23 ou 26 anos na Síria pronto para uma ‘Guerra Santa’. Ela passa necessariamente por abdicarmos de leituras e escutas superficiais e maniqueístas que apontam o problema no outro e nos afirmam sãos; reside em abdicarmos de nosso arrebatador narcisismo e praticarmos uma escuta mais atenta e cuidadosa – do outro e de nós mesmos”, afirma o psicanalista.
Em algum grau, nós também repetiríamos a leitura “maniqueísta” que faz o terrorista, porém sem sairmos matando como estes grupos fazem. Segundo ele, após atentados como os ocorridos recentemente em Paris, imediatamente montamos discursos que determinam ‘monstros’ e ‘inimigos’ e criam identidades precárias que nos afirmam como “vítimas”, “solidários” e “não-monstros”, formatando assim uma batalha “humanidade x inumanos”, “bem” contra “mal”.
Esse discurso teria sentido e importância apenas num primeiro momento. “Inicialmente, é um processo fundamental. Afinal, encaramos uma dor dilacerante, um luto terrível e precisamos elaborar isso, tentar dar um sentido, amenizar o sofrimento que nos acomete. Contudo, após a poeira baixar, é importante também sair disso. Dizer que um terrorista não é humano ou que o ato do terrorista não é humano, como o Papa fez, é um equívoco… Um imenso equívoco. O terrorismo é sim humano, porém trabalhamos duramente, cada um de nós, para contê-lo em nós mesmos, assim como tentamos nos conter com nossa corrupção, intolerância, brutalidade, dificuldade de lidar com alteridade, agressividade etc. Entretanto, o fato é que o microcosmos do EI se manifestam em nós – diariamente no trânsito, em casa, em nossos relacionamentos –, só que usualmente não surgem de maneiras tão gritantes e chocantes quanto às dos terroristas. Enfim, o EI explicita o que contemos, o que temos de mais rústico em nós. A civilização é uma conquista para nós mesmos, mas contra nós mesmos; não é nosso ponto de partida”, pondera Thiago.
Para o psicanalista, nossa participação nisso tudo é não permitirmos, nem lidarmos com qualquer coisa que fuja de nosso ideal civilizatório. Não damos, assim, tempo para a escuta da dor e para o entendimento dos sintomas antes que eles tomem dimensões mais dramáticas. Essa questão da escuta seria fundamental, pois seria ela o que, segundo ele, abriria o caminho para a linguagem e poderia, assim, contribuir para que os sujeitos destes atos atrozes partissem para “ações menos miseráveis do que comunicados brutais e sem palavras”.
Thiago complementa: “O terrorismo na verdade propaga o terror tanto para o autor do ato quanto para o alvo: para o terrorista, o terror de novamente ser um à margem, visto como monstro, como a negação da vida e dos valores de uma civilização da qual ele discorda, mas da qual adoraria fazer parte caso alguns vários pontos fossem mudados e adaptados à sua maneira (despótica). Para os alvos do ataque, nós inclusos (em horror voyeurístico acompanhando cada notícia, rumor, imagem), o terror vem pela presentificação inequívoca da morte e do desamparo, o que descontrói os frágeis sustentáculos simbólico-imaginários que nos escoram em um dia a dia ensandecido cheio de sentido para a vida – sentido que o terrorista faz desmoronar; amarras simbólico-imaginárias que desabam com a onipresença da morte e a exposição às mais evidentes marcas de nosso desamparo”, conclui.
* Thiago Sarkis é membro supervisor da CAPA, instituição internacional de psicanálise.