Para além dos cem
O mito de Titono fala sobre um fulano que foi presenteado com a vida eterna, mas não ficou tão feliz assim devido a um pequeno detalhe. A dádiva foi uma conquista de sua amada Aurora (Eos da mitologia grega, deusa do amanhecer) que, apaixonada por um mortal, intercedeu junto a Zeus pedindo a tal da imortalidade. Mas ela esqueceu de pedir também a eterna juventude. Titono foi envelhecendo até virar putrefato e sem movimentos. Aurora trancou o ex-amado num quarto escuro para não ser mais obrigada a olhar para ele.
O avanço da tecnologia e suas aplicações médicas nos oferecem a possibilidade de imaginar um novo desfecho para Titono. Tocada pela situação de seu amado, Aurora intercederia junto ao deus Tecsus para que use sua tecnologia e imprima os órgãos 3D do seu querido, incluindo pele e ossos, com base na receita de seu DNA.
Impressões de órgãos podem não ser uma realidade tão distante. A “Scientific American” tem publicado artigos a respeito. Apesar de não ser uma possibilidade hoje, espera-se que em 2020 esteja despontando por aí. A empresa belga Materialise já disponibiliza algumas aplicações importantes para o uso de modelos de órgãos em 3D. Alguns cientistas falam em uploads de consciências em novos cérebros artificiais, como o popular expoente da ciência da computação, Ray Kurzweil. Ele acredita que alcançaremos uma imortalidade cibernética lá pelos anos 40. Kurzweil prevê que em 2029 já seremos parte humanos e parte máquinas, principalmente com o crescimento da nanotecnologia. Também diz não ter dúvidas de que um dia seremos imortais e de que vamos transferir o conteúdo do nosso cérebro para outro meio físico, como um novo hardware.
No futuro, poderemos ter corpos e mentes artificialmente projetados. Quem sabe, ser de carne e osso será comparado a selvagens indomáveis que precisam ser colonizados.
Se você pudesse escolher quantos anos deveria viver, qual número escolheria? 100, 105, 125, 150? Ou começaria com mil e conforme fosse se enfadando da vida iria diminuindo o número até chegar no zero? Aí, era só chegar numa clínica de “boa morte” e fazer com que a mente pare de funcionar numa viagem promovida a psilocibina e sem dor. Uma decisão racional, como a eutanásia e o suicídio assistido. Mesmo resultado, diferentes motivos.
Kurweil prevê, por exemplo, que em 2030, vamos criar avatares de pessoas que já morreram com as informações passadas em vida. Essa ideia foi desenvolvida num episódio da série “Black Mirror”, disponível no Netflix. No episódio, uma empresa cria réplicas dos mortos usando vídeos (para imitar sua voz, movimentos faciais e corporais), fotos e e-mails, toda informação deixada em vida para também reproduzir suas possíveis opiniões e decisões. Um grande desdobramento para essa inovação seria novos paradigmas para o desapego e o luto.
Se a eterna juventude fosse então possível, haveria um momento em que Titono decidiria morrer por conta própria? Cansado de Aurora e dos deuses eternos do Olimpo, ele diria um basta por estar exaurido nem tanto dos outros, mas de si mesmo. O tédio tomaria conta de Titono. Até que um dia, ele subiria no alto de um precipício, arrancaria a própria pele e sairia voando.
OBS: Esse é o centésimo post do blog “Morte sem Tabu”, que segue sua trajetória para além dos cem….
Vídeo: Você viverá o suficiente para viver para sempre? Ray Kurzweil