A morte segundo os sentidos dos maoris
“Os maoris creem que temos uma alma e uma essência de vida. Essa essência nos é dada a cada vida, estará em nós enquanto vivermos e deixará de existir com a morte do nosso corpo, do nosso “recipiente”. A alma estará conosco pela eternidade”.
A advogada especialista em direitos do autor, Luciana Freire Rangel, escreveu um artigo para o blog relatando sua experiência ao acompanhar curadores maoris em sua passagem por São Paulo. Os maori são um povo nativo da Nova Zelândia . Recebem de seus ancestrais, desde pequenos, ensinamentos para tornarem-se curadores (Luciana prefere o uso da palavra curador ao invés de curandeiro porque esse último remeteria à algo mais ritualístico). No texto, ela fala sobre essa cultura tão curiosa, sua filosofia de vida e concepções sobre a morte. Um abs, Camila
Observação: Durante minha licença-maternidade, abri o blog para depoimentos de leitores. Os interessados em ler os artigos já publicados, por favor pesquisem nas abas laterais. Há cem posts disponíveis, separados por temas. Ou entrem na página do Facebook do blog. Para enviar seu depoimento, escreva para mortesemtabu@gmail.com. Um abraço, Camila
“A morte segundo os sentidos dos maoris
Como você vê a morte? – Tão claro como eu vejo você. Foi com esta simplicidade e objetividade com as palavras que Manu Korewha começou a falar sobre este tema que é tão lôbrego para nós.
Manu Korewa é da cultura Maori, povo nativo da Nova Zelândia. Ele é da comunidade costeira de Ahipara, ao Norte de Auckland e recebeu de seus ancestrais, desde pequeno, ensinamentos para ser um curador. Manu, Atarangi Muru e Terence Muru estiveram durante alguns dias em São Paulo, fazendo workshops e trabalhos de cura. Manu, em sua jornada, realizou trabalhos com o Papa Joe Delamere, que durante muito tempo foi o curador maori de maior repercussão internacional.
Os maoris, hoje minoria em sua terra natal, são muito conectados com a natureza: “se conecte com a natureza, ela te dará as respostas. Ela tem todas as respostas. E é de graça!”.
Eles são conectados com todos e através de todos os sentidos. Neste trabalho de cura, nos auxiliam a reconectar nossas mentes e corpos, nos trazendo equilíbrio. Ajudam na limpeza de emoções estagnadas, que criam placas no nosso organismo. Limpam as memórias ruins que estão contidas nas nossas células. Para isso, usam todos os sentidos. Atarangi, conhecida por Ata, que é uma curadora muito importante, nos contou que nossos corpos contam para eles sobre nossos traumas. Eles podem receber a informação através de um aroma, de um paladar, de um toque, de uma visão. Por exemplo, uma pessoa que sofreu abuso sexual possui um cheiro muito específico. Assim, de imediato, é possível reconhecer o que se deve trabalhar. Eu participei de um workshop e fiz uma terapia com Terence e o resultado foi impressionante. Para quem quiser saber mais, inseri abaixo alguns links sobre a cultura maori, a Nova Zelândia e estes curadores.
A morte, para eles, é algo muito natural, faz parte da vida. É um assunto que precisa ser lembrado e sobre o qual devemos conversar frequentemente.
Morte, para os maoris, é Mate. “Ma” significa “esclarecer” e “Te”, “múltiplo”. Manu conta que existem muitas perguntas sobre a morte e que ela nos traz muitas respostas. Por isso “múltiplos esclarecimentos”. Perguntas, questionamentos são muito incentivados entre eles, pois nos fazem refletir e aprofundar.
Por possuírem tradição oral, todos os nomes e palavras carregam conceitos profundos que explicam as suas crenças. Os livros que falam sobre estas tradições são pouquíssimos. Tudo o que eles aprenderam, aprenderam em casa, com o ensinamento de seus ancestrais, que são muito respeitados. Uma criança de cinco anos conhece até cinco gerações de ancestrais. Com dez anos, conhece dez, quando crescer e chegar ao 25 conhecerá 20 e por aí vai. Um tio da Ata e do Manu sabe de cor, organizados por ordem de parentesco, até 11 mil nomes de ancestrais.
“Ma” significa limpo, branco e “Ori” é o vibrar de cada um. Assim, Maori significa a pura essência da vibração interna.
Eles nos dizem para lermos menos livros e mais o que contam nossos corpos e a natureza – para nos reconectarmos. Não é que não sabemos fazer esta conexão, é que simplesmente esquecemos de como fazer. Manu reforça: “a lua, as estrelas, o sol que me iluminam são os mesmos que iluminam vocês”.
Para os Maoris, não existem palavras para sofrimento, medo, raiva, culpa e erro. Não existem palavras para bonito e feio, para positivo e negativo. Tudo vibra e nos ensina, não havendo necessidade de antagonismos. Como achei em alguns artigos e dicionários on line brasileiros a palavra “wehi” como medo, indaguei sobre o seu significado. Manu esclareceu que “wehi” é o que alguém provoca em você. O palhaço te faz rir, isto é “wehi”.
Antigamente, nas cerimônias Maori, os mortos eram postos de pé e enfeitados como se estivessem vivos. Depois, eram colocados em uma árvore para que a natureza, através do ar, do vento, da chuva, dos insetos, dos pássaros e de outros animais, consumissem sua carne e seus órgãos. Cuidavam deste processo até que o corpo, já consumido, tivesse se reduzido a ossos. Estes, posteriormente, eram pintados com uma espécie de argila vermelha e depositados em uma caverna. Esta cerimônia era realizada na intenção de devolver o corpo para a mãe terra.
Chocados com essa e outras cerimônias “selvagens”, os ingleses, em torno de 1850, proibiram as suas realizações. Atualmente, os mortos são enterrados em cemitérios.
Para eles, as cremações não fazem sentido: uma vez que não nascemos do fogo não devemos partir pelo fogo. Nascemos da grande mãe, da mãe Terra e para ela devemos voltar.
Os maoris creem que temos uma alma e uma essência de vida. Esta essência nos é dada a cada vida. Estará em nós enquanto vivermos e deixará de existir com a morte do nosso corpo, de nosso “recipiente”. A alma estará conosco pela eternidade. Quando morremos, a alma retorna ao criador até que um novo “recipiente” possa recebê-la. No momento de renascer, uma nova essência de vida nos é dada e será única para aquela vida.
A cada nova vida, todas as condições mudam para que possamos aprender cada vez mais e nos tornarmos cada vez mais livres. Sempre renasceremos em lugares distintos, inclusive em outros planetas, convivendo com outras pessoas e situações.
A nossa alma se recorda das nossas vidas, mas o nosso “recipiente” geralmente não. Ao menos neste planeta poderia nos trazer muita confusão. As pessoas que têm acesso a estas informações geralmente possuem uma missão específica neste sentido.
Para os maoris, as crianças precisam saber tudo sobre a morte. É um assunto que deve ser tratado com naturalidade e desde muito cedo. Afinal, a morte é inexorável. A única certeza que temos na vida é que um dia vamos morrer. Se a criança sabe sobre a morte desde cedo, ela não ficará triste quando alguém próximo morrer, não achará que foi abandonada. No futuro, se tornará um adulto que lidará com a morte como algo natural e não como algo misterioso, objeto de traumas, ou seja, um tabu.
Para eles, esse conhecimento nos ajuda a ter mais consciência no momento da morte. Entendem que não temos escolha de como nasceremos, mas temos a possibilidade de escolher como morreremos. Podemos escolher se morreremos felizes, em paz, ou gritando e sozinhos, por exemplo. Esta decisão nos ajudará no nosso renascimento.
Durante o workshop, diversas vezes ressaltaram as diferenças entre a nossa cultura e a deles. Um exemplo básico: não existe a palavra impossível, que em inglês é impossible. Então eles dizem que esta palavra é na verdade I´m possible (eu sou possível, em português).
Ata conta que, viajando pelo Brasil, a quantidade de cruzes nas estradas chamou sua atenção. Para eles, esta homenagem às pessoas que sofreram acidentes é uma prática muito estranha, pois mantém a energia da pessoa que morreu presa naquele local, naquela forma de morrer. A forma de morrer, se foi acidente, câncer, etc, não é o que importa. O que importa é que a pessoa fez a passagem e um novo ciclo vai começar. E precisamos deixá-la ir. Eles sentem a morte de um ente querido e choram esta morte, mas vivem aquela dor e a deixam passar.
Homenagens como rezas, meditações cânticos, inclusive as prestadas nos cemitérios serão sempre pertinentes se tiverem a intenção de libertar as pessoas. Qualquer homenagem que prenda as pessoas não faz sentido.
Quando perguntei se é possível conversar com os mortos, ele apontou para algo atrás de mim e disse com seu habitual bom humor: ela está falando de vocês!
Seguiu esclarecendo que o tempo todo podemos falar com as pessoas que deixaram seus corpos. É algo absolutamente possível. Com o poder do coração, da mente e do universo, podemos falar com todo mundo. Quando alguém faz a passagem, podemos nos comunicar para nos despedir, para pedir desculpas, para dizer o quanto a amamos. Podemos sentir a pessoa, podemos conversar com ela. Basta pensar nela com amor e liberdade. Existem canções para facilitar estas conexões. Nada de milagres, nada de mistérios, tudo é absolutamente possível e natural.
Perguntei sobre a relação deles com os animais. Para eles, a maneira como muitos de nós – eu inclusa – tratamos os animais de estimação, não faz sentido. Animais precisam estar livres e em contato com a natureza. Penso que isso deve fazer sentido para nós também!
Manu brinca que, na Nova Zelândia, a população se divide em ovelhas (em torno de 46 milhões) e seres humanos (em torno de 4,5 milhões), estes divididos em descendentes de europeus e nativos, que hoje são minoria. Os Maoris não têm restrições em relação a comer carnes. Entretanto, estes momentos exigem um agradecimento, que pode ser discreto e profundo ou mesmo uma cerimônia. Dentro desse sentimento de gratidão, existe o reconhecimento de que a comunidade é uma com o animal e o animal está ali para integrar, alimentar aquela comunidade através de sua carne.
Pergunto se ele gostaria de deixar algum recado especial para nós, sobre como viver bem até que ela – a morte – chegue. Então, ele lembra que precisamos estar em nós. Estar em nós significa fazer coisas, pequenas coisas, que nos deixem felizes – e que não machuquem os outros, claro! – , que deixem nossos corpos saudáveis, nossas emoções saudáveis. Devemos sempre lembrar que cabe somente a nós escolher. Cabe a nós escolher e nos curar. Podemos escolher se buscaremos uma relação saudável ou se ficaremos em uma relação que nos faz mal, se vamos ingerir alimentos que deixem nossos corpos saudáveis ou se iremos aos poucos os deixando envenenados, se vamos colocar lazer no nosso dia a dia ou se iremos trabalhar 28 horas por dia. Podemos escolher se seremos os mestres de nosso futuro ou os escravos de nosso passado.
Segue dizendo: se chover, vá para a chuva e prepare-se para se molhar. Um ser Elemental quer falar com você e a maneira da chuva fazer isto é te molhando. Não foque na crença do frio e de uma possível doença, foque na canção que a chuva quer cantar para você. Acredite, vai dar tudo certo e ela vai cantar. Cantar para você!
Para saber mais sobre os Maoris e estes curadores, selecionei, de muitos, alguns links abaixo. Um Abraço, Luciana”.
Contato: luxrangel@hotmail.com
Links:
Em português
Atendimento do Maoris Healers no Brasil
Sobre a Nova Zelandia e os Maoris
Tratado de Waitangi, entre os Maoris e a Coroa Britânica
Palestra com tradução para o português
Filmes sobre a Nova Zelândia – não sei se todos estes filmes têm o olhar dos Maoris sobre os Maoris, alguns podem ter um olhar do ocidente sobre os Maoris, mas vale a pena conferir.
Sobre a influência dos Maoris nas novas formas de justiça, que buscam a resolução de conflitos baseado no diálogo e na responsabilização de todas as partes envolvidas.
Em inglês:
Site oficial – Maori Healers, com cantos maoris
Entrevistas com Atarangi Muru.