Meu cachorro morreu
E então, você se foi.
Não posso dizer que foi uma surpresa. Eu já estava, há muito tempo, na expectativa de que isso viesse acontecer. Até fiz um encontro em casa, com amigos, para se despedirem de você. E todos foram me lembrando de como você estava velho, com dificuldade de locomoção, de escuta, de olfato. E como era um milagre um cachorro como você ter chegado aos 17 anos.
A verdade é que eles tinham razão e seus sentidos iam, aos poucos, se desligando na minha frente. O corpo se desfazia e eu nem sempre prestei atenção. Mas quando o dia chegou, me assustei. Como se toda a compreensão da sua morte não passasse de uma ideia abstrata, uma ilusão.
Eu acordei e te vi quase em pé, desnorteado. Você tinha espasmos. Seu olhar parecia não me reconhecer. Senti, ali, um perigo. Te chamei, busquei qualquer reação à minha voz, ao toque. Nada. Fomos ao veterinário, que identificou uma desidratação. Já me senti culpada. Será que eu deveria estar forçando água na sua boca? Comida?
Você recebeu duas horas de soro na veia. Fui te buscar. O diagnóstico: aparentemente, se tratava de um AVC. Mas não tem tomografia, stent ou operação cerebral para um cachorro de 17 anos. O que tem se chama sacrifício, a eutanásia animal. Na sua situação, era recomendado. Você não parecia estar em sofrimento. Na verdade, você já parecia estar mais ali. Chorei. Eu que to aqui, publicamente levantando a bandeira da opção pela morte natural, não me senti bem com a ideia de te sacrificar. A morte é um dia que vale a pena viver, como diz Ana Claudia Arantes. Fomos para casa e eu não consegui sair do seu lado.
Uma amiga, espiritualizada, chegou. Ela disse que você estava partindo, acendeu vela e colocou um copo com açúcar para o santo. Ou para o anjo da guarda. Eu sou agnóstica, mas senti tremendo conforto nesse gesto e no carinho dela.
Na hora de dormir, te levei para o meu quarto. Deitado no tapete, ao lado da cama, você tentava se mexer. Os movimentos não se completavam. Parecia que você dava ordens para a pata andar, e ela não saia do lugar. Você estava preso dentro do corpo. A resignação era mais forte do que a frustração. E eu me senti inútil. Coloquei água em uma seringa, sem agulha claro, e tentei força-la. Você só tirou a cabeça de perto. Você disse não. Me frustrei. Coloquei comida para você cheirar. Você até cheirou, mas não quis. Demorei bastante, mas acabei entendendo que eu estava constrangida em não saber como lidar com a nossa situação. Não tinha o que eu fazer. Mas em algum momento, me dei conta de que estar presente era, em si, uma atitude. Um gesto de carinho, um agradecimento por você ter me acompanhado por praticamente metade da minha vida. Decidi que ficaria ao seu lado, nesse momento final da sua vida.
Acabei dormindo.
Acordei de manhã com você arfando. Respiração rápida e curta. Dei um Google. Ah, arfar pode ser dor. Você estava com dor? Será que era egoísmo meu não te sacrificar? Decidi que ligaria para o veterinário. Eram 6h da manhã. Não. Esperaria mais. Um site disse que a temperatura do cachorro vai baixando conforme os órgãos deixam de funcionar. Você estava frio. Coloquei um cobertor. Outro afirma que é importante estar em um ambiente arejado. Abri um pouco a janela. E senti muito sono. Será que eu poderia voltar a dormir? E se você morresse? Era uma sensação forte. Muita vontade de fechar os olhos. Deitei. Será que eu estava fugindo? Desliguei, mas não dormi profundamente.
Veio uma onda de calor muito grande no meu rosto. Acordei com a bochecha quente. Não abri os olhos. Será que eu estava ficando doente? Estava calor naquele quarto? Não, não estava. Só no meu rosto. Silêncio. Cadê sua respiração arfada? Não abri os olhos. Ah, ta aqui. Estendi as mãos. Escutei duas respirações longas, pausadas. Silêncio. Ué? Acho que estou sonhando. Dormi. Se passaram 10 minutos, eu acho. Meus filhos brincando na sala, prontos para ir para a escola. 7h30 da manhã. Ninguém me chamou? Quem os vestiu? Você estava ao lado da cama. Já não havia respiração, já não havia trocas de olhar, não havia vida. Gelo.
E então, você se foi.
Alguns dias depois, recebo uma ligação:
– Camila?
– Sim.
– Aqui é…. aqui é… então… eu sou do cemitério e crematório de animais. (a voz falhando). Eu… tenho aqui… as cinzas do seu animalzinho, o Trovão… Mil desculpas, mas podemos combinar a entrega?
– Olá, você sempre fica constrangido assim? Que peso!
– Com certeza! É uma dificuldade, sabia? A gente liga em um momento tão difícil, poxa, é o animal de estimação, um ser tão querido…
E desembestou a falar. Você foi mais um que se foi. Muitas pessoas lidam com isso todos os dias, que tem essa sensibilidade como ofício. Mas o constrangimento é sempre do outro, daquele que está, teoricamente, do lado “de fora”. Eu fiquei constrangida ao ver o Trovão morrer. O agente vet funerário ficou constrangido ao ter que lidar com meu luto. Mas, talvez, se Trovão pudesse falar, teria latido algo parecido com o que eu falei para aquele agente: Calma “mamãe”, não é lá muito gostoso, mas ta tudo bem. Que peso!
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