Quem tem medo do coronavírus?

A maioria das pessoas não pensa (ou não quer pensar) na morte, até que se vê obrigada. Nos últimos meses, milhões não tiveram outra escolha, senão a de pensar sobre ela. Seja em relação a si próprio ou de quem está em volta. 

Embora especialistas apontem que uma dose de medo pode ser importante para gerar alerta de perigo iminente, muito medo não é saudável. Vimos os níveis de ansiedade e depressão subirem amplamente em todo o mundo, exigindo maiores cuidados com a saúde mental.

No entanto, há o grupo dos sem-medo. Ou, melhor, dos que têm tanto medo, mas tanto medo, que preferem bloqueá-lo completamente, na esperança fantasiosa de que assim zarpam de vez com a própria ameaça que os rodeia (Confira texto sobre medo da morte aqui no blog).

Olhar para o medo é sair da fortaleza de poder que cerca a muitos de nós, entendendo nossos limites, nossas fraquezas e que somos passíveis de cair a cada passo. Em tempos ditos “normais” (acrescente aqui muitas aspas), eu diria que cada um escolhe lidar ou não com seus medos. Mas em tempos de pandemia, os sem-medo precisam entender que sua escolha coloca em risco inclusive quem olha e cuida do medo que carrega.

Uma amiga próxima, que prefere não dizer o nome, discutiu com um de seus familiares porque ele se recusava a usar máscara em casa mesmo após cinco dias de febre, tosse e dores no corpo. Sabemos, todos esses são sintomas da Covid-19. A pessoa alegava que era seu direito decidir o que fazer.

Cansada das inúmeras discussões, a amiga, sem qualquer sintoma, isolou-se em seu quarto e passou a utilizar a proteção facial em todos os cômodos da residência. No fim, o exame da pessoa deu negativo. Mas poderia ter sido ao contrário e toda uma família acabar contaminada, inclusive sua mãe, idosa com doença crônica.

O exemplo é apenas uma ilustração do que vem acontecendo todos os dias no Brasil, quando o Presidente da República se recusa a olhar suas próprias fragilidades e de sua ínfima e desastrosa governança, e mente a si próprio negando a pandemia, a vacina, a ciência e, pior, fingindo não enxergar a trágica situação na qual se encontra o país. Vide o que aconteceu em Manaus em janeiro.

Em janeiro, a ONG Internacional Human Rights Watch publicou a 31ª edição de seu Relatório Mundial apontando Jair Bolsonaro (sem partido) como um dos culpados pela crise social e sanitária do Brasil. O relatório diz que Bolsonaro tentou “sabotar medidas contra a disseminação da Covid-19 no Brasil” e impulsionar “políticas que comprometem os direitos humanos.”

“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas antidireitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, é o que disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida.

O conceito de capacitismo pode explicar muito bem como funciona o grupo sem-medo da pandemia. Quem fala sobre isso é Victor Dimarco. Ator, diretor e dramaturgo, Victor é criador do filme ‘O que pode um corpo’, que reflete sobre o tema e um dos vídeos de seu perfil no Instagram traz a reflexão ligada à pandemia: 

“O capacitismo é uma estrutura de pensamento. Afeta nossa sociedade e está afetando também a forma como a gente está lidando com a pandemia. E como a sociedade também normalizou a morte a partir de uma visão capacitista e o egoísmo. O capacitismo parte de uma supremacia da capacidade. Ou seja, quem é mais capaz possui mais privilégios. Eu falo de capacidade corpórea ou financeira. Até porque , infelizmente, uma está ligada a outra. A gente ainda vive em um mundo onde alguns corpos valem mais que outros. Na pandemia, o que mais se falou, no senso comum, foi como a Covid-19 não representava um risco tão grande para grupos que não faziam parte do grupo de risco. Ou seja, as pessoas mais “capazes” socialmente. Esse senso comum pensa que esse grupo de pessoas “capazes” se sentissem no direito de voltar ás atividades não essenciais de seu dia a dia, fazendo aglomerações e afins e levando ainda mais o vírus”.

Sim, a vacina está aí, estamos confiantes. É emocionante ver nossas idosas e idosos sendo finalmente protegidos. Mas é importante dizer que há 21 dias a média de mortes diária está acima de 1 mil. Vale lembrar que esse número só foi registrado em maio de 2020, diante do pico da pandemia no país. Até agora, são 234.850 mil mortes e mais de 9 milhões de casos e uma variante do vírus rondando a nossa esperança.