Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O que ele foi e fez é maior do que a forma como ele morreu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/25/o-que-ele-foi-e-fez-e-maior-do-que-a-forma-como-ele-morreu/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/25/o-que-ele-foi-e-fez-e-maior-do-que-a-forma-como-ele-morreu/#respond Wed, 25 Nov 2020 20:49:31 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/ae24a2d6-1615-4bad-9fe7-802fdd6f4446-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2171 Luciana é psicóloga há 21 anos. Sempre gostou de escutar as pessoas e achava que conseguia, de alguma forma, ajudá-las.

Quando estava se formando na área, em 1999, resolveu dar uma festa de comemoração. Contratou um rapaz chamado Marden, que tinha uma empresa de eventos. Os dois amavam música, ele tocava violão, ela também. Em três anos, engataram namoro e se casaram. Tiveram dois filhos.

Luciana via Marden como uma pessoa animada que gostava de receber amigos em casa, cozinhar, procurava agradar todo mundo. Em uma sexta-feira de novembro de 2015, depois de um dia considerado normal, foram dormir. “A gente se deu boa noite combinando o dia seguinte. Então, fui acordada com a triste notícia de que ele havia se matado”.

Começou a estudar o tema como uma forma de entender melhor o que ocorreu. Hoje, ela vê sinais de mudança de comportamento do marido naquela época, como deitar depois do almoço no escuro, coisa que não costumava fazer até então.

“A depressão não era algo visível. Hoje, vejo claramente que ele era bipolar, só que quando ele ia para hipomania, ele não se deprimia da forma mais comum de se ver. Ele continuava fazendo seu trabalho e realizando suas atividades”. Lamenta não ter tido qualquer matéria sobre suicídio na Federal de Minas Gerais, UFMG, onde se formou psicológa.

Luciana não sentiu culpa ou remoeu acontecimentos, como pode ocorrer em situações assim. Ela sentiu que Marden nunca teria feito aquilo por uma reação a algum comportamento dela. “Ninguém acaba com a própria vida por causa de alguém”. Mas o estigma era difícil de ignorar.

“Nos primeiros dias eu pensei: nossa, vou ficar de óculos escuros, porque eu não aguento nem olhar nos olhos das pessoas. Não era de vergonha, porque eu nunca tive vergonha. Tudo o que Marden foi e fez de bom é muito maior do que a forma que ele morreu. Falo com orgulho que fui esposa dele. Mas fica o estigma sim, você se torna a mulher do suicida”.

Nos últimos três anos, Luciana diz termos começado a falar mais sobre suicídio. No setembro amarelo, principalmente. E alerta para alguns mitos que a incomoda, como dizer que a pessoa que deseja se matar não ameaça, vai lá e faz.

“A gente sabe que quando a pessoa diz, tem que ser levado a sério. Isso é um sinal. Outra coisa é quando a pessoa chega a tentar o suicídio, e não morre. Ela é mal tratada nos serviços de saúde, ou até mesmo por familiares. Teve paciente minha que já escutou falarem ‘nem para morrer você presta’. Eu atendo uma pessoa aqui que o médico falou ‘isso aí é falta de homem, você tem que arrumar um namorado’”.

Luciana acha importante termos mais profissionais especializados no tema e psiquiatras trabalhando nas redes públicas, atendendo de forma efetiva. “A pessoa tem que entender sobre isso, fazer um treinamento dentro de pronto socorros, por exemplo”.

Como mensagem final, ela coloca: “Eu gostaria que as pessoas soubessem, que quando uma pessoa tira a própria vida, ela tá com estreitamento cognitivo de consciência. Ela não sabe exatamente o que  está fazendo. Está tão desesperada que a única forma que ela consegue enxergar para acabar com essa dor insuportável, é se matando. O suicídio não tem a ver com falta de amor. Então não achem que  uma pessoa que se matou não te amava”.

Contato da Luciana:

psicologiabh.luciana@gmail.com

@luciana.psicologia

 

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‘Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/seriamos-mais-gentis-uns-com-os-outros-se-aceitassemos-o-medo-da-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/seriamos-mais-gentis-uns-com-os-outros-se-aceitassemos-o-medo-da-morte/#respond Mon, 02 Nov 2020 14:39:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/98040940_1031999907195557_1772374123628986368_o-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2148 Finados é um momento importante para esse blog. Afinal, é um dia em que todos querem falar sobre morte, nosso assunto diário. É também próximo à nossa data de aniversário. Morte sem Tabu nasceu há seis anos. Não por uma coincidência, é a idade do meu filho.

Esse é um espaço para compartilhar a dor e a complexidade dos mais variados lutos, acolher relatos, falar sobre suicídio abertamente e sem pisar em ovos (mas com respeito e responsabilidade), entrevistar profissionais do setor funerário, abordar livros, arte, autonomia no final da vida. Vida.

Hoje é um Finados atípico, bem descrito por Fininho na Folha de S.Paulo (leia aqui). Os cemitérios abrem suas portas para receberem as famílias dos que morreram de COVID-19. Muitas, visitarão seus túmulos pela primeira vez. Sem a pressa e a dureza do enterro sem velório a que foram submetidas.  

Um dia propício para falarmos sobre narrativas de conforto para lidar com nosso medo da morte. Esse tema é explorado pelo filme “Into the Night: Portraits of Life and Death” (Noite adentro: retratos da vida e da morte), da premiada documentarista americana Helen Whitney.

Recentemente, a entrevistei por intermédio de Tom Almeida, idealizador do Movimento Infinito. 

O filme é uma exploração das narrativas de conforto oferecidas por pessoas como a diretora funerária e comunicadora Caitlin Doughty, o astrofísico Adam Frank, o ator Gabriel Byrne e o ambientalista Max More.

Para o ator, a arte conforta como uma possibilidade de legado e a transmutação de um sentimento complexo. Para o ambientalista, é a  ideia de imaginar o corpo retornando à terra e de lá crescer uma árvore, em sua beleza majestosa. Para o astrofísico, é contemplar nossa pequenez na vastidão do universo. 

“E o que me traz mais conforto, depois de ter feito esse filme, é entender que todos nós estamos todos juntos nessa. Isso me traz mais conforto do que qualquer outra coisa. As pessoas estão se perguntando as mesmas coisas, têm esperanças e receios que não são tão diferentes dos meus. Isso nos torna menos solitários. Sim, estamos nessa juntos”, diz Helen.

            A diretora entende que o medo da morte, apesar de nos unir, também pode nos separar, ao negarmos que temos isso em comum. Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte. É o que  está por trás de algumas das nossas maiores crueldades e das maiores conquistas. É  que está por trás da construção de catedrais, da escrita de poemas, da atividade de colocar tinta nas paredes, da arte”. 

Como reação ao filme, ela se surpreendeu com a adesão de um público mais jovem, enxergando a possibilidade de falar sobre morte para viver a vida de forma mais plena.  

Para o filme, Helen também trouxe as narrativas dos que buscam a imortalidade, como os transhumanistas. Mas ela  não gostaria de viver para sempre. “Eu sinto que, conforme envelheci,  fiquei mais inteligente e mais gentil com os outros e comigo mesma. Mas demorou um pouco para eu chegar aqui, então eu gostaria de aproveitar a recompensa disso tudo só um pouquinho mais…”. 

Infinito.etc

O lançamento desse filme foi um dos atrativos da edição desse ano do Festival Infinito, criado por Tom Almeida.

Ao abraçar seu pai nos últimos minutos da sua vida na cama do hospital, Tom acessou um amor tão intenso que sentiu o infinito dentro da finitude, o permanente na impermanência. Dessa percepção surgiu o nome do festival, que teve sua terceira edição neste ano.

            Ele começou em 2018 como “Inspiração sobre Vida e morte”, a primeira série de eventos organizados para abordar o tema da morte, trazendo aos brasileiros o conhecimento de iniciativas pioneiras ao redor do mundo. “Não podemos perder o protagonismo da nossa própria doença”, diz Tom. “A melhor forma de oferecer esse protagonismo é informar”. 

Tom agregou e potencializou nossa voz em uma série de eventos e estratégias de comunicação que têm alcançado muitas pessoas e ressoando em espaços importantes.

Pensando nas dificuldades impostas pela pandemia aos rituais fúnebres, ele organizou guias para cerimônias fúnebres virtuais (disponíveis nesse link) e a terceira edição, online, do Festival  Infinito, com 3 mil inscritos (2 mil foram gratuitos). Nas suas palavras “para passar um final de semana inteiro falando e ouvindo sobre a morte e se sentir completamente vivo”.

Algumas pessoas são presença registradas nas edições desse evento, como a médica paliativista Ana Claudia Arantes, a musicista Yoko Sen, que redesenha o som dos hospitais, os bipes dos aparelhos, para tornar a experiência mais acolhedora, o diretor do Zen Hospice Project Roy Remmer, o fundador da plataforma “Death Over Dinner”, Michael Hebb e a Ana Michelle Soares.

Por ter sido um evento completamente online e contar  com figuras internacionais, como Andrew Solomon, o famoso autor de “Demônio do Meio-Dia”, a organização recebeu inscrições dos Estados Unidos, Portugal, Suíça. Existe toda uma estrutura de eventos e iniciativas para discutir a morte ao redor do mundo. Podemos dizer que o Brasil, finalmente,  está incluído nessa discussão.

 

Festival inFINITO 2020 01: Solenta Sonada e Tom Almeida
Festival inFINITO 2020: Tom Almeida (divulgação)
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Como ajudar uma pessoa em luto: comece não atrapalhando https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/04/16/como-ajudar-uma-pessoa-em-luto-comece-nao-atrapalhando/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/04/16/como-ajudar-uma-pessoa-em-luto-comece-nao-atrapalhando/#respond Tue, 16 Apr 2019 14:05:08 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/IMG_8608-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1695 No último post, escrevi sobre a morte do meu sogro. Acabei me dando conta de que, focada no processo da morte em si, deixei de lado algo fundamental: o que vem depois dela. Não dei atenção ao luto do meu marido. Me vi falando frases bestas como, “vai passar”, “não se cobre muito”, “é normal sentir isso ou aquilo”. Me senti impotente, não consegui oferecer suporte. Ainda bem que existem pessoas que se dedicam e estudam especificamente esse assunto.

Acompanho a página “Vamos falar sobre o Luto”, o “Instituto 4 Estações”, o “Lelu: Laboratório de estudos e Intervenção sobre luto”, de Maria Helena Franco, e o Projeto Lutar no Instagram. Estou lendo o livro “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, de Rosa Montero, da editora Todavia.

E conversei com a psicóloga e psicanalista Eleonora Jabur. Compartilho aqui nossa troca.

Não há uma receita sobre como ajudar uma pessoa enlutada, por ser um processo individual, mas algumas recomendações podem ser feitas. Eleonora disse que a melhor forma de ajudar é não atrapalhar o processo do outro. “Costumamos ficar muito angustiados com o sofrimento de quem está perto e, para acalmar essa nossa angústia, tentamos aplacar a dor do outro, usando frases como “vai ficar tudo bem”, “vamos sair, pensar em outra coisa”. Queremos que o outro sofra menos. O resultado disso pode ser ruim, porque a pessoa sente que não pode ter esse espaço de dor. A intenção é ótima, você quer dizer “tenha esperança”, mas ela não está, necessariamente, sentindo isso naquele momento. O efeito pode ser oposto e essa pessoa acabar se sentindo na obrigação de estar bem”.

Frases como: “Eu sei o que você está passando”, poderiam ser substituídas por algo como “eu imagino como está sendo difícil isso para você”.  Estimular o outro a sair, frequentar ambientes sociais, pode soar muito invasivo.  “O processo de luto é um processo de introspecção. Não atrapalhar é deixar o processo correr e estar disponível. ‘Estou por aqui para o que precisar’, ‘Você gostaria de conversar? ‘.’Você gostaria de tomar um café?’”.

Comentei que me senti impotente na situação de amparar o luto de alguém tão próximo. Eleonora me acalmou: “a impotência surge porque você quer fazer alguma coisa, você quer tirar a dor dele, mas isso não é possível. O processo de luto precisa de um tempo para acontecer. Essa impotência é uma angústia mais sua do que dele”. Touché.

Lembrei do livro “O Pai da Menina Morta”, de Tiago Ferro, que resenhei para a QuatroCincoUm. Tiago menciona esse constrangimento do outro tempo todo. Todas as pessoas que já entrevistei na seção de luto desse blog sentem-se mal nesse sentido. Quando se aproximam de um grupo que está conversando, todos ficam sérios, em silêncio, constrangidos. Se mencionam a pessoa falecida, há um climão no ar. E muitas vezes, essa pessoa quer falar sobre seu luto, contar histórias de quem morreu, relembrar. Ela está totalmente imersa naquilo. É o outro quem evita.

Questionei sobre quando é necessário buscar ajuda especializada. Eleonora citou Colin Parkes, psiquiatra inglês estudioso do tema: “o luto é o custo do amor”. Só há luto se houver vínculo. Alguns estranham essa sensação, pensam que tem algo de errado com eles. Ela me disse que a depressão e o luto são muito parecidos, por isso a confusão. “É aconselhável buscar ajuda quando não conseguimos mais fazer as coisas básicas do dia a dia, de sobrevivência, como comer, dormir, tomar banho, e ter pensamentos suicidas e de desesperança muito acentuados. É chamado luto complicado quando a pessoa não consegue retomar a vida. Ele é dividido em três: luto crônico, luto adiado e o luto inibido.

Recomendo esse artigo da psicoterapeuta Maria Helena Franco sobre o Transtorno do Luto Complicado. Clique aqui.

Eleonora resulta que quanto mais ambivalente a relação com a pessoa perdida, teoricamente, mais difícil será o processo de elaboração do luto. Mas isso só pode ser analisado depois de um tempo.

Esse tempo não é específico. “Antes, se falava em um ano de luto, depois, falou-se em dois. Cada vez menos temos falado em um prazo específico, por se tratar de um processo individual”.

Outra mudança no entendimento do luto é o conceito dos cinco  estágios, ou cinco fases do luto, como costumava-se dizer. “Nem todo mundo passa por todas as fases do luto e não necessariamente nessa ordem. Hoje, falamos em um processo dual do luto. É um processo que alterna, em direção à reparação e em direção à perda”.

Eleonora usou o termo “vínculos contínuos” para se referir a essa direção da reparação. “A relação com a pessoa falecida estará sempre presente, ela só vai ocupar outro lugar”. Lembrei da página do Facebook “Mães para Sempre”, e as das entrevistas que fiz com sua fundadora Amanda Tinoco.

O luto também é considerado particular porque depende do histórico de cada um. “Você revive alguns lutos quando perde outra pessoa. Por exemplo: se a pessoa perdeu a mãe na infância, pode reviver esse luto ao ter uma perda, aparentemente, insignificante na vida adulta. Esse luto antigo pode ser revivido”.

Eu não sigo uma religião específica, mas vejo os benefícios que um conjunto de dogmas e seus rituais podem trazer nesse momento. No judaísmo, por exemplo, a comunidade se encontra para oferecer suporte ao enlutado. As tarefas básicas, como cuidar da casa, cozinhar, são feitas por essa rede de suporte. No início do luto, é muito difícil manter uma rotina, cuidar do básico. Essa rede é bem-vinda nesse sentido.

Eleonora começou a estudar luto em 2007. Cursou psicologia hospitalar durante a faculdade e quis se aprofundar no assunto para atender familiares dos pacientes que faleciam. Hoje, encontrou uma área de especialização particularmente difícil: Luto na perinatalidade: Gravidez, parto e puerpério.

O luto gestacional faz parte de uma categoria de lutos chamada “lutos não reconhecidos”. Entre eles:  perda de um ex-marido, bichos de estimação, divórcio e aposentadoria. Eleonora comentou que o luto do pai, nas perdas gestacionais, torna-se mais complicado porque todo mundo vai acudir a mãe e o pai torna-se invisível. Há um depoimento comovente, aqui no blog.

Culpa

Algumas pessoas sentem culpa por ficarem bem muito rápido. Há um julgamento nesse retorno à vida social. “Muitas vezes, a pessoa que retoma a vida em pouco tempo sofre preconceito. É um estranhamento nosso, que não faz sentido”, diz Eleonora. Por outro lado, um dos jeitos de lidar com o luto pode ser também o não lidar com o luto. “O luto não elaborado pode aparecer lá na frente e precisa ser cuidado. Mas é possível que seja o processo natural de luto dessa pessoa. É importante se permitir”.

Contato: nojabur@uol.com.br

 

OBS: foi feita uma correção no texto: Colin Parkes é psiquiatra e não psicólogo.

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Uma poesia para cada dia que resta https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/#respond Fri, 01 Feb 2019 19:33:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/laura_graduation-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1679 Rodrigo nasceu em Belo Horizonte, há 45 anos. Hoje, mora em São Francisco, Califórnia, onde trabalha como engenheiro de software. Foi ali, no escritório, que recebeu o resultado de um exame anunciando: câncer pancreático, metastático. “No dia que escutei a notícia foi um pânico, desespero. Me ligaram falando que havia algo muito sério e que o laudo estava online. O laudo falava em câncer pancreático com grandes chances de metástase. Olhei as estatísticas de sobrevivência e vi que eram em meses e não em anos. Fui para casa chorando, mas minha esposa me ajudou muito. Aceitei relativamente rápido meu destino. Tá, não gosto dessa palavra, mas pode ser sim, vai: destino”.

Era pouco antes do Natal, 2017. Rodrigo foi a um dos mais renomados cirurgiões pancreáticos, em Stanford, que disse: “não há esperança de cura”—não era viável operar o tumor. Mas Rodrigo queria mais. Final de ano não é um bom período para o pai de duas meninas desaparecer. Final de semestre, trabalhos na escola, perguntas que ficariam sem respostas. Ele decidiu adiar o fim ao máximo, tentar os tratamentos possíveis, lutar.

Os caminhos que podem ser percorridos nessa “luta” exigem uma conversa sincera e honesta com o médico. Esse tipo de conversa é um hábito nos Estados Unidos, uma regalia no Brasil. Ele trocou de oncologista no meio do caminho, após a oncologista inicial dar por encerrado o tratamento. “O oncologista atual, do fim, é ótimo. Pão, pão, queijo, queijo. Compartilhou comigo a escolha do tratamento. Ele me deu três alternativas, contou os prós e contras de cada uma e me deixou escolher. Cada semana eu ia lá e conversava sobre o tratamento com ele. Com a piora do meu quadro, ele apontou a alternativa da sedação definitiva. Aqui, essa sedação é uma coisa delicada. No Brasil, é bastante comum.”

Durante nossa conversa, fiquei sensibilizada com sua postura serena, lúcida e positiva perante a proximidade da morte. Ele se sente honrado por ter tido esse tempo, esse um ano e pouco entre o diagnóstico e o momento atual, que é mais definitivo. Se sente abençoado por ter tido tempo para preparar sua morte, sua despedida. Um ataque cardíaco, por muitos considerado uma morte desejável por ser rápida, é visto por ele como ruim. Seu pai morreu assim, de repente, passeando em Goiânia. Rodrigo vê sua vida entre aquele dia no escritório e o hoje como um presente, com a consciência de que cada dia a mais vale a pena.

“É como se eu tivesse morrido e ganhado um bônus para usar da melhor forma possível. De um lado, eu comecei a fazer tudo como se fosse possível ter uma cura. Já do ponto de vista filosófico e psicológico, de auto conforto, eu pensava que mesmo tendo um tempo limitado, tive o benefício de ter tido a notícia antes de morrer. Eu usei esse tempo que eu ganhei para escrever dois livros, melhorar o relacionamento com minha esposa, e cuidar de coisas práticas, como ter certeza de que ela e minhas filhas estarão bem providas materialmente”.

Parte dessa atitude positiva pode vir da transmutação da dor oferecida pela poesia. Rodrigo começou a escrever, sob pseudônimo, um livro de poesias e crônicas (disponível gratuitamente aqui), como esta a seguir e outras que inseri ao longo desse artigo.

Graaaaaaande vantagem

A grande vantagem deste livro sabe qual é?

É que, a ele, ao contrário do outro, nunca me falta inspiração.

Se era pra escrever poesia e à cabeça me vem prosa,

Vai a prosa formatada como poesia, e pronto: está feito.

Aliás, vou lhe contar um segredo: não espalhe, sim?

Este livro é meio como o livro de areia, de Borges:

Dele parecem brotar as páginas, assim, sem mais,

Sem ordem definida, ou, sequer, um propósito claro.

Eu desconfio que no real seja ele mesmo que escreva-se,

Pelas madrugadas afora, enquanto durmo o sono dos justos.

Ah, e sabe qual é outra coisa que brota enquanto durmo?

O meu tumor pancreático. Eu o chamo de Ático, pra simplificar.

Ático, Ático, abane a cauda. Bom menino. Agora finja-se de morto!

Ó: em vez de venenos, dou-lhe açuquínhar. Não fingiu, o maldito.

Ando desconfiado de que ele não é cão, e, sim, uma píton reticulada.

Que diabo de cachorro tem, de uma só ninhada, oitenta filhotes?

 

Conforto espiritual

Rodrigo buscou conforto espiritual durante o tratamento, apesar de não ter uma religião específica. Fez, por exemplo, um curso de introdução ao zen-budismo, num mosteiro da região. “Eu gosto de elementos de várias religiões.  Um aspecto que eu gosto do budismo é o das pessoas passarem por um processo de melhoria. Estamos aqui por uma razão e isso vai gerar um crescimento para nós e para as outras pessoas. Gosto também do amor incondicional do catolicismo. Essa é a base da igreja e as pessoas esquecem. Ficam nesse nós e eles. O que não gosto do cristianismo é o inferno. Isso não deveria existir na religião. Ela deveria ser motivada pelo amor e não pelo medo”.

Autonomia na morte

Hoje, Rodrigo está em casa sob cuidados do Mission Hospice. Ele avalia a possibilidade de um suicídio assistido, como é chamado na maioria dos países. Rodrigo não gosta da terminologia. Ele tem razão, é horrorosa. A Califórnia a chama de “end of life act”. O paciente tem o direito de levar um remédio letal para casa e tomá-lo no momento que achar adequado. O coração demora aproximadamente 30 minutos para parar de bater. Na Suíça, é questão de segundos. Rodrigo já resolveu a parte burocrática do “end of life act” e tem essa opção à sua disposição. Outra alternativa que lhe parece mais palatável é a sedação definitiva. A pessoa é sedada profundamente, de uma maneira que, em geral, leva à morte em alguns dias. É uma alternativa legalizada no Brasil e bastante usada. Em muitos casos, sem o consentimento do paciente. “Eu me sinto no controle desse quando (da morte). Eu tenho duas opções para isso: o remédio de fim da vida e a sedação definitiva. Os dois estão esquematizados pela parte burocrática. É uma questão de decidir quando. Vai depender de quanto tempo eu ainda terei com razoável qualidade de vida, conversando com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, lendo algo legal, escrevendo… O que me leva pois a contemplar essa possibilidade é ver que essa minha qualidade de vida nessas últimas semanas piorou bastante”. Ter qualidade de vida para Rodrigo é poder conversar, estar bem ao lado da família, enfim, não estar em um “inferno”, vomitando, com dores, azia, diarréia…

Leia mais sobre esse tema na categoria eutanásia e suicídio assistido no blog.

A jornada até essas “últimas semanas” foi intensa. Ele tentou vários tratamentos possíveis, quimioterapias, terapias direcionadas e uma imunoterapia, até que seu corpo parou de reagir aos tratamentos.“Fiz 5 regimes de tratamentos diferentes. É muito raro isso. Os dois primeiros foram cobertos pelo seguro de saúde do meu emprego. O terceiro foi gratuito, porque era experimental, bancado por um laboratório grande. O quarto e quinto, mais heterodoxos, foram com seguro parcial”. Quando o médico disse que não havia mais opções para ele, pensou: “agora é uma questão de avaliar a qualidade de vida. Eu vou ter majoritariamente dias que valem a pena viver ou dias que não valem a pena?”

Rodrigo foi o cuidador primário da sua mãe—que morreu de câncer um ano e meio antes de seu diagnóstico—na última semana que ela passou em casa. “Eu fui também a pessoa que estava ao seu lado no momento da morte. O processo de ter que lidar com sua doença foi mais doloroso do que ter que lidar com a minha própria doença. Primeiro porque a sobrevivência no meu caso era difícil desde o início, mas não impossível. Embora estejamos falando de 1 ou 2% de taxa de sobrevivência a longo prazo, havia uma esperança. É um mecanismo de autopreservação. Eu entrei nesse modo. De luta, de tentar de tudo. Essa luta pela sobrevivência absorveu muito da minha energia”.

Somos condicionados a ver a morte como uma inimiga. Em diversos obituários ainda se lê: lutou contra um câncer até o final mas não aguentou, perdeu a vida para um câncer, batalhou até o fim. A morte de alguém doente, como ocorre na maioria dos casos e muito provavelmente será o meu destino e o do leitor, traz em si essa teoria cinematográfica da trajetória do herói. O herói vence a morte. O anti-herói é vencido por ela, definha, morre. O curta metragem “A Senhora e a Morte” faz uma caricatura desse momento, colocando o médico como um ser nada simpático, a lutar contra a morte a qualquer custo.

Rodrigo não vê seu tratamento como uma perda, apesar de usar a palavra “luta”. Ele vê seu tempo, e cada dia que passa, como uma conquista. Ele quer decidir como e quando morrer. Ele possivelmente sentiue sente um desconforto que muitos de nós nem consegue imaginar. Mas ele aprecia cada bom momento que passa com sua família e com os amigos. Cada momento que compartilha, cria. Não se contentaria com menos do que isso. Não é possível saber se Rodrigo ainda estaria vivo sem os 5 tratamentos a que se submeteu. Inclusive, ele não poderia ser julgado caso tivesse optado por nenhum. Ele não teria desistido ou deixado de lutar. Essa ideia de “perdedor” é um estigma, uma construção social que se transforma ao longo do tempo. Para mim, essa história é um convite à reflexão sobre autonomia, escolhas, e a forma como nos comportamos perto de alguém diagnosticado com uma doença sem cura. E, claro, uma valorização da vida, dure quanto durar.

 

Conte praquelas suas amigas que reclamam dos maridos

Que o menino

Mesmo cancerígeno

Mesmo pancreático

Mesmo envenenado

Mesmo irreativo

Mesmo semivivo

Mesmo operado

Mesmo metastático

Mesmo sem antígeno

Mesmo nesta briga

Mesmo tão pequeno

Mesmo tão doído

Mesmo tão drogado

Mesmo enjoado

Mesmo mal-dormido

Mesmo com preservativo, a não lhe passar veneno

Mesmo com dezoito anéis de ferro na barriga

Ainda agora, quiçá depois

Lhe causa, sem mais, um bom orgasmo ou dois.

No caso, dois.

Abaixo, um pouco mais da nossa conversa.

O que você acha da ideia da imortalidade?

“Toda vez que me perguntam sobre isso, eu penso nas semanas mais horripilantes que eu passei. Combinação de dor, náusea, vômito, diarreia. Eu tenho mais horror a esse cenário, da pessoa presa em uma situação de que ela não pode sair. Acho a imortalidade extremamente perigosa nesse sentido. Não gosto também da ideia de uma imortalidade imóvel, como no cristianismo, onde você atinge um estágio de plenitude, final e imutável. Mas aceito a imortalidade se for uma imortalidade com evolução contínua, aprendendo coisas novas, melhorando”.

Arrependimentos?

“Todos.  Eu queria ter tantas outras vidas para viver. Explorar outras possibilidades. E se eu tivesse feito isso diferente, ou aquilo? A vida é como fluir rio acima. Na medida em que ficamos mais velhos, vamos estreitando os afluentes. O ideal seria conhecer todo o rio, todas as nascentes. Arrependimento não é a melhor palavra, mas eu teria vontade de experimentar como seria a vida se eu tivesse feito outras escolhas. Não necessariamente as grandes decisões: as pequenas, as que parecem insignificantes. Eu tenho saudades do futuro, desse futuro do pretérito, do que podia ter acontecido, sabe? Honestamente, eu não estou angustiado, amedrontado… eu já estive psicologicamente muito pior do que estou agora. Mas eu queria ter feito mais na vida. Me deixa chateado não poder passar mais tempo com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, amigos, família… É chato saber que meu tempo agora é muito limitado. Eu queria ter realizado aqueles sonhos de criança, sabe?—como escalar o Aconcágua”.

Como seus amigos estão reagindo?

“Eu gosto de receber visitas. Escrevi uma crônica sobre isso que se chama Bem-vindo ao meu funeral. O amigo do seu amigo, por exemplo, fica sabendo e quer virar seu melhor amigo de repente. A pessoa faz aquilo na melhor das intenções. Muitos chegam com sugestões para dar. Por exemplo: uma amiga de infância que eu não via há décadas quis me levar no João de Deus. A irmã de um amigo disse: coma casca de limão. Outro amigo mais recente sugeriu brócolis e cúrcuma. E houve ainda um que prescreveu dois banhos frios por dia. Ah, e uma tia quis mandar nove sacos de folha de graviola do Brasil. Recebi dicas até de cogumelos alucinógenos. É uma preocupação sincera das pessoas, que eu tomo como uma prova de amor. Mas vou e guardo com carinho na minha lista de sugestões heterodoxas”.

Bem-vindo ao meu funeral

Ele não deveria estar ali, no regrado,

Mas é ali que clinica a massoterapeuta.

E ela é a única que o põe no ângulo certo e aplica a pressão certa

Sobre uma barriga com tumores tantos e tais.

Então lá vai ele pelo pátio principal da Corporação,

Apressado, em meio à sua licença médica.

Proibido não é, mas roga aos Céus que não o vejam

Os colegas vários que por ali almoçam.

Não é um colega, é um amigo da família que ali trabalha

Quem vem mais adiante pelo caminho, em conversa com um outro.

Está distraído. O verá? Será que o verá? Por certo o verá.

Ele sabe pela esposa dos detalhes da doença. Pronto: o viu.

Do dito se altera completamente o semblante: está consternado.

Ele pede licença ao outro e abre bem os braços, em exigência de firme abraço.

“Não, um sorriso por favor, meu caro, que ainda não é hoje o meu funeral.”

Só que claro que não, né, leitor? Seria uma grosseria sem tamanho.

“Eu lamento profundamente, sim? E a família como está?”

“Aqui: está tudo bem conosco. Estamos encarando da forma mais positiva possível.”

“Olhe, pois nós estamos orando muito por vocês. O que precisarem, é só dizer.”

“Estamos todos bem, de verdade. Mas muito obrigado pelos préstimos.”

Ele olha ao redor, de soslaio.

Ufa: ninguém conhecido parece ter notado a cena.

Imagine se logo além da quadragésima versão daquilo,

Estivessem a quadragésima-primeira, a quadragésima-segunda…

A verdade é que o amigo também não tinha remédio.

Fazer o quê? Dar-lhe um simples bom dia? Seguir adiante?

E quem é que mostra os dentes diante de um condenado?

Ele fez o estritamente sensato, se não exatamente o sensível.

“Olhe, um santo remédio pra isso, sabe qual é? O chá de folha de graviola.”

“Não, chá de casca de limão. Aliás, coloque casca de limão em tudo o que você puder.”

“Ó, não sou médica, mas aí vai um artigo que me parece excelente. De todo, não o li.”

“Dois dias de jejum antes da quimio, e um depois. Banho, só gelado, duas vezes por dia.”

“Cem gramas ou mais de brotos de brócolis por dia. E três gramas de curcumina.”

“Ah, o melhor é você seguir logo os conselhos do Doutor Lair Ribeiro.”

Tá, o Lair Ribeiro foi um exagero retórico. Um pequeno exagero retórico.

Mas o resto é só pra ficar nos parentes mais próximos e amigos mais sinceros.

Unguentos. Emplastos. Ervas. Ninguém diz nada disso por mal.

Aliás, este que vos fala é que deveria ser menos ingrato, honestamente.

E tomar cada receita tal por aquilo que por fato ela é:

Uma prova de que com ele se importam a valer os parentes, os amigos.

Oxalá jamais ponha o bom Deus em seu caminho tal prova, leitor.

Mas, se assim calhar, aceite o seguinte conselho:

Responda cada sugestão dessas com um sincero sorriso,

E use a parca energia que lhe resta para fazer o que lhe diz a oncologista, a nutricionista…

Por você ser jovem, as pessoas parecem se espantar mais?

“Talvez a reação seja mais intensa. Mas pouca gente tocou nesse aspecto específico. Me incomoda quando alguns falam: ‛não se preocupe, vai dar tudo certo, você vai se curar, tem que confiar no milagre, o segredo da cura é confiar que ela vai acontecer’. Eu sou um engenheiro, de coração. Eu acredito em estatísticas, seguir o que tem uma probabilidade minimamente razoável de acontecer. Eu não vou bater boca com ninguém por isso, mas ser relativamente jovem faz diferença nesse sentido. As pessoas chegam mais com essa conversa: você sai dessa. Eu não quero negar, quero lidar com o problema. A negação é chata e improdutiva”.

 

Quais diferenças você vê entre o tratamento no Brasil e nos Estados Unidos?

“Nos Estados Unidos, o tratamento em si é muito mais ágil, há mais opções. A pessoa está muito mais no controle. No Brasil, o oncologista falava o que tinha que fazer e ponto final. Aqui, nos EUA, tem uma troca. Pode ser uma questão cultural e até por razões legais. Minha mãe demorou dois meses para começar a se tratar. Eu estava no cirurgião na mesma semana do diagnóstico. Na semana seguinte estava começando a quimio. Mudei de oncologista no meio dos tratamentos. Mudei porque a primeira oncologista já não acreditava mais no tratamento. Não vou continuar com uma pessoa que não acredita no tratamento corrente e nem quer propor soluções alternativas. Mudei para outro médico com muita facilidade. Na semana seguinte, já estava começando outro tratamento. Essa facilidade de ter uma segunda opinião, terceira opinião, mudar de médico, é maior aqui, nos Estados Unidos”.

O que a convivência com a terminalidade nos ensina?

“A gente tem um mecanismo de defesa que não nos deixa pensar demais na morte. Ter um prazo concreto para a morte remove esse mecanismo de defesa e nos obriga a lidar com a morte como algo real. Serve para colocar a vida em perspectiva e pensar no imponderável, imaginar o que eu desejo para o provir, as alternativas que eu admito como desejáveis. E também para focar nas boas memórias, lembrar das minhas filhas quando eu as segurei em uma mão só, na maternidade. Eu penso muito nas minhas filhas como algo que, por si, já me valeu a vida. Uma das contribuições principais que eu deixo são essas duas mulheres… São ótimas, inteligentes, divertidas, e têm uma consciência social, uma consciência do papel que elas têm nesse mundo”.

 

Décimas do velho e bom Mestre Zossima

Ó, uma coisa me parece provável nisso tudo:

ou bem o barco flutua, ou bem ele afunda.

E, se ele flutua, ele flutua para todos.

E, se ele afunda, ele afunda com todos.

Por isso, pare de desejar que a água mine

Bem aos pés daquele seu vizinho mais chato.

Sim, que ele é chato, é chato. Eu concordo.

Ô pela-saco, meu Jesus Cristo.

Mas a enxutez, ou é para todos,

Ou é por um tempo bem limitado.

Então, por caridade, pelo bem da harmonia cósmica,

Tenha muito cuidado no você espera que aconteça, sim?

E como eu sei disso?

Bom, eu não sei. O principal da estória toda é que eu não sei.

Outro dia me apareceu alguém num sonho dizendo que se chamava Universo

E ele me disse que essa aí era a verdade. Mas vá se saber.

Outra coisa que ele me disse:

Que cada um, do seu particular ponto de vista,

Rema na direção que lhe parece mais promissora,

E o mar é quase que uma imensidão redonda, e só.

Por isso a resultante do esforço é muito pequena.

Bom, é pequena se comparada ao esforço.

Mas fato é que, se ninguém puser força no remo,

O barco seguirá à deriva.

Por isso reme, leitor.

E se a direção adiante não lhe parece frutífera,

Esprema-se por entre os demais,

E ache uma nova direção.

Reme e reze, mas reze por todos. Por todos, sim?

E peça perdão até aos passarinhos do bom Deus.

“Quem acredita no povo de Deus verá Sua glória,

Mesmo se antes não acreditasse em Deus.”

Essas são as exatas palavras do velho e bom Mestre Zossima.

“Nosso povo resplandecerá na face da terra e todos os homens dirão:

A pedra que os construtores rejeitaram,

Essa veio a ser a principal pedra, angular.”

“E lembre-se principalmente de que você não pode ser juiz de ninguém.

Pois na terra não pode haver juiz de um criminoso, antes de esse juiz compreender:

Ele mesmo é tão criminoso quanto aquele que comparece na sua frente,

E talvez ele seja o primeiro culpado pelo crime.”

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Matar ou morrer, a cultura da polícia militar no Brasil https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/#respond Thu, 25 May 2017 15:26:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1319 O protestos realizados na tarde desta quinta-feira (24), contra o presidente Michel Temer, voltaram a desencadear uma imagem recorrente no noticiário brasileiro: a de uma polícia fria e violenta. Há poucas semanas, eram as fotos da agressão ao estudante Mateus Ferreira, em Goiânia. Na manhã de ontem, ações na cracolândia e, hoje, temos o emblema de um policial atirando diretamente contra manifestantes no Palácio do Planalto.

Em meio a esse noticiário, Rafael Alcadipani, pesquisador da EAESP-FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e um dos maiores especialistas na questão atualmente, abriu ao blog “Morte Sem Tabu” os bastidores de como esses homens são estimulados à violência.

Alcadipani descreve uma rotina massacrante, em que policiais vivem sob péssimas condições de trabalho e constantes ameaças de morte, já que muitos são mortos apenas por carregarem a farda. O policial também luta contra um estigma ruim da sua profissão. “O polícial não é bem visto no Brasil. A presença constante com criminosos, estupradores e homicidas gera um estigma que afeta estes profissionais”, diz.

Um apontamento importante é que, entre os policiais, há muita ansiedade e depressão. Como ganham pouco, a grande maioria faz bicos em segurança privada, shoppings, casas, escoltas, etc. E acabam exaustos e impacientes.“A maior parte está endividada. Eles têm psicólogos, mas ir na psiquiatria é suicídio moral”, comenta o pesquisador. O que os levaria a um sentimento maior de isolamento, reforçando suas atitudes violentas.

Alcadipani afirma que a polícia militar brasileira está entre as que mais mata no mundo. É uma atitude justificada como “resistência seguida de morte”. A impunidade acaba influenciando, “se o caso chegar ao júri, é comum serem absolvidos diante da ficha criminal daquele que foi morto”. Ele diz que “a sociedade incentiva que ele mate, mas no final das contas ela abandona o policial que tem que tirar comida da sua família para pagar os altos custos dos advogados”.

Além disso, o policial militar que mata é bem visto dentro das sub-culturas da corporação. Ele é chamado de “Billy”. Dentro dessas sub-culturas das PMs, os colegas reforçam informalmente que ele tem que matar, que ele tem que bater para ser respeitado ali dentro. “Para ser visto como macho, o policial  militar precisa humilhar”, aponta Alcadipani.

O especialista também diz já ter escutado falarem que “matar é como trair, quando você começa, você não para mais”. A atitude envolveria um sentimento de onipotência, “eles sentem pouca culpa, mas se sentem deuses, porque na nossa civilização ocidental, quem tira a vida é Deus”. Outra frase marcante é: “não fui eu quem matou, eu só apertei o gatilho, quem tira a vida é Deus”. Muitos PMs se sentem como os “vingadores da sociedade”, os que irão livrar “a sociedade de todo o mal”.

Um possível mecanismo para melhorar essa situação, segundo Alcadipani, seria a mudança das culturas das PMs. A polícia civil, por exemplo, não teria esse comportamento, ao passo que a militar sim, como uma herança da ditadura que é reforçada internamente.

E o desenvolvimento de uma política pública eficaz, que possibilitasse uma mudança de paradigma na nossa sociedade, que hoje vê a criminalidade como um problema individual. “Uma consequência disso é a ideia de que o criminoso é uma pessoa do mal que deve ser combatida individualmente, levando os policiais militares a entenderem seu papel como justiceiros da sociedade, aqueles que resolvem os problemas com as próprias mãos. A sociedade acredita no mito de que matar resolve. Não que o criminoso não precise ser punido, mas pela lei e não pela vingança”, comenta o pesquisador.

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Confissões do crematório https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/#respond Sun, 21 Aug 2016 12:58:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/Crematório-Caitlin01-2-180x99.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1075 A norte-americana Caitlin Doughty abraçou uma missão: desmitificar o tabu da morte. Com seu canal no YouTube, o “Ask a Mortician”, ela apresenta vídeos curiosos sobre a indústria da morte usando humor afiado e sagacidade. E usa a escrita para apresentar o leitor a um setor pouco conhecido do público em geral – os bastidores da morte.

Seu livro, “Confissões do Crematório” (ed. Darkside, 2016), lançado recentemente no Brasil, é uma compilação de casos reais vividos durante seus primeiros seis anos trabalhando em um crematório nos Estados Unidos.

Doughty não pisa em ovos. Ela destrincha os tópicos mais mórbidos de forma bem direta. Conta sobre um bebê que precisou raspar a cabeça (pois a família queria guardar o cabelo de lembrança), e atividades como lubrificar uma mão para tirar a aliança, remover marca-passos para não explodirem no forno crematório, moer ossos em um liquidificador de metal, inserir tampas espinhosas embaixo das pálpebras para os olhos ficarem fechados e barbear mortos. São ações que incitam um dilema comum aos trabalhadores desse ramo: “Eu não tinha certeza se Byron era um ‛ser’ ou uma ‛coisa’ (um corpo), mas parecia que eu devia ao menos saber o nome dele para executar um procedimento tão íntimo”, escreve.

A autora oferece uma revisão histórica da morte, como o surgimento do embalsamamento, da cremação, dos cemitérios modernos, a higienização do processo do morrer com a transferência dos moribundos de casas para hospitais, os ritos fúnebres nas diversas culturas – a tribo brasileira Wari que comia seus mortos, os budistas tibetanos que deixam os corpos ao ar livre para serem devorados por entidades celestiais (os urubus) e o costume fúnebre da ilha de Java, na Indonésia, de abraçar e lavar cadáveres.

Ela relaciona o tabu da morte com o do sexo: “Enquanto o sexo e a sexualidade eram o tabu central do período vitoriano, a morte e o morrer são o tabu do mundo moderno”. E cita o antropólogo britânico Geoffrey Gorer, “nossos bisavós ouviram que os bebês eram encontrados embaixo de arbustos de groelha ou de repolhos; nossos filhos provavelmente vão ouvir que os que faleceram (…) viram flores ou descansam em lindos jardins”.

O envolvimento profissional de Doughty com a morte surgiu da tentativa de superação de um trauma de infância. Aos oito anos, ela presenciou uma garotinha cair para fora da escada rolante de um shopping center. Doughty diz ter se traumatizado por nunca ter tido contato com a morte antes desse evento. Após o trabalho no crematório, ela cursou uma faculdade funerária em São Francisco e chegou à conclusão de que “quanto mais eu aprendia sobre a morte e a indústria da morte, mais a ideia de outra pessoa cuidando dos cadáveres da minha família me apavorava”. Essa consciência a estimulou a fundar sua própria casa funerária, a “Undertaking LA”.

Consciência funerária

Em entrevista à Folha, Doughty conta que a “Undertaking LA” é a única casa funerária sem fins lucrativos de Los Angeles, e afirma se preocupar em envolver as famílias nos cuidados com seus mortos. Ela organiza, por exemplo, workshops para os clientes saberem o que exatamente é feito com os cadáveres.

“Eu não concordo com os funcionários do ramo (tanatopraxistas, patologistas, funcionários do crematório) somente lidarem com os corpos mas nunca com suas famílias. Se você ignorar os vivos, a família enlutada, você pode perder de vista o fato de que cada corpo representa um ser humano com uma história”, conta.

Doughty relaciona os problemas da sociedade moderna com uma cultura que ela considera negar a morte: “Se não podemos aceitar que vamos morrer, não vamos aceitar que estamos matando o planeta. Não iremos aceitar que estamos destruindo espécies. E acabamos aceitando certos atos de guerra, terror e violência. Se a morte não é real para nós, vamos permitir que essas coisas continuem acontecendo”.

Agora, Doughty trabalha em seu próximo livro: sobre como revolucionar o setor funerário e define uma epígrafe para si: “Ela morreu fazendo o que amava: a morte”.

OBS: Esse texto foi publicado na “Ilustrada” em 20.08

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A morte segundo o judaísmo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/16/a-morte-segundo-o-judaismo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/16/a-morte-segundo-o-judaismo/#respond Tue, 16 Feb 2016 10:52:35 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=839 Para o rabino Adrián Gottfried, a morte faz parte da vida. A separação entre morte e vida seria fruto da cultura moderna. “É algo relativamente novo e está vinculado ao processo de passarmos a morrer nos hospitais”, ele diz.

Com licenciatura e mestrado em Sociologia pela Universidade Nacional de Buenos Aires, esse rabino de origem argentina é líder spiritual da Comunidade Shalom há 18 anos. É uma comunidade paulista que também se destaca por uma participação feminina relevante, ao aceitar mulheres como rabinas.

Na entrevista abaixo, ele comenta a abertura da tradição judaica a interpretações, “não há uma única voz oficial. Se você falar com 35 rabinos, terá 35 versões diferentes”. Mas haveria pontos de consensos, como a crença de que a morte não é o fim da vida. Como essa continuidade ocorre seria passível de interpretações. “Para uns, a continuidade significa continuarmos através dos filhos, da família. Não apenas família biológica, pode ser também um professor, um mestre. Na medida em que você mantém a pessoa acesa, ela continua te inspirando e é eterna”.

Adrián também fala sobre os costumes judaicos para o luto e seus ciclos. O hábito de rasgar um pedaço da roupa na morte de um familiar direto, por exemplo, “simboliza o início da consciência do processo de luto. Nunca estamos preparados para esse momento, não importa há quanto tempo a pessoa estava doente. Por isso, a roupa rasgada ajuda no início dessa conscientização. Depois de um tempo, costuramos a parte rasgada, para simbolizar que a cicatriz permanece eternamente e você vai aprender a conviver com esse vazio no coração”.

Como o judaísmo vê a morte?

 A primeira questão importante para o judaísmo é que a morte é uma parte da vida. Não é algo separado da vida, é a outra cara da mesma moeda. Na tradição bíblica, a morte não é chamada de morte mas sim de “voltar para casa”. É uma espécie de reunião. Não sabemos como vai ser esse reencontro porque ninguém voltou de lá para contar. A palavra morte nem aparece na bíblia. Quando eu falo de bíblia, só para ser mais preciso, estou falando dos cinco primeiros livros da bíblia, a Torá, que para a tradição judaica, são os textos mais importantes.

A cultura moderna traz uma separação importante da morte. Isso é algo relativamente novo e está vinculado ao processo de passarmos a morrer nos hospitais. Antigamente, as pessoas nasciam e morriam em casa. Por tanto, eram eventos considerados naturais. Hoje, quando alguém nasce, vai para o hospital e quando alguém morre, vai para a UTI, fica entubado e recebe visitas que duram apenas meia hora e olhe lá. Poucos sistemas permitem que a família fique próxima da pessoa. Existe o movimento de hospices que tenta dar um pouco de cuidados paliativos para os casos em que a medicina já não tem muito o que fazer. Mas a maioria das pessoas, ainda que entenda que a medicina não possa atuar mais, acha que o médico vai cuidar melhor do parente do que a própria família. A tecnologia pode ser boa para algumas coisas e ruim para outras. Há a fantasia de que estar conectado a um monte de tubos é melhor.

Leia mais na sobre a filosofia hospice e cuidados paliativos na categoria “cuidados paliativos” do blog.

A morte vai chegar para todo mundo, ela é democrática. Trabalhando como rabino há tantos anos, eu percebo que as mortes são muito diferentes. E para cada pessoa impacta de uma forma diferente. Os lutos são diferentes. Podem haver mortes mais simples de aceitar. A tradição judaica tenta, de alguma maneira, ajudar as famílias enlutadas a lidar com esse momento e tomar consciência dessa realidade. Talvez uma das coisas mais importantes dessa tradição seja ajudar as famílias a passar pela experiência da morte sabendo que todos passaremos por ela, mas cada passagem é individual.

 Como o judaísmo vê o luto?

 Trabalhamos com dois princípios: a santidade da pessoa falecida, que são os rituais vinculados ao corpo, e o consolar a família. Sobre a pessoa falecida, há o ritual de lavar o corpo antes de enterrar, chamado tahará. Optamos por nunca expor o corpo em velórios para preservar a imagem da pessoa em vida, e é uma forma de dizer que ela não está mais lá. Há simplicidade, o caixão não tem adornos e a roupa do morto é uma mortalha branca, igual para todos.

O judaísmo diz que a morte tem quatro períodos de luto. O primeiro vai do momento da notícia até o enterro. Trabalhamos para ajudar a família a cuidar do enterro e a realizá-lo o mais rápido possível. O enterro no judaísmo tem que ser orgânico. Somos contra, por exemplo, a cremação. É uma questão muito dura para o judaísmo porque, primeiro, é antinatural. Se alguém te empresta um livro, você vai querer devolvê-lo inteiro e não queimado. O corpo é um empréstimo que fazemos. A segunda questão é que, depois das câmaras de gases em Auschwitz, o corpo queimado ganhou outra dimensão. Sem contar o impacto psicológico e espiritual nas famílias que não terão um espaço para poder lembrar do falecido.

Após o sepultamento, há o luto dos primeiros sete dias. Nesse período, os familiares diretos rasgam um pedaço de suas roupas. Para pai e mãe falecidos, rasgamos do lado esquerdo, que é o lado do coração. Para os outros familiares diretos como esposa, irmãos e filhos, rasgamos do lado direito. Simboliza o início da consciência do processo de luto. Nunca estamos preparados para esse momento, não importa há quanto tempo a pessoa estava doente. Por isso, a roupa rasgada ajuda no início dessa conscientização. Depois de um tempo, costuramos a parte rasgada para simbolizar que a cicatriz permanece eternamente e você vai aprender a conviver com esse vazio no coração.

Nesses sete dias, o enlutado sai da sua rotina para se dedicar às rezas. A reza é um pretexto para as famílias se reunirem para resgatar as memórias sobre o morto. A memória ajuda a ver que, fisicamente, a pessoa não está mais lá mas algumas coisas continuam. Muitas vezes, os familiares estão ligados à última fase da vida do morto, enquanto ele estava doente, e se esquecem do “filme” inteiro. Parte da função dos rabinos é ajudar a resgatar essa memória – que está lá mas é pouco acessada. Incentivamos as famílias a dar depoimentos, a contar casos. É um momento para celebrar a vida da pessoa que morreu. A tradição judaica dá uma ferramenta para ajudar, mas depende da pessoa querer. Nem todo mundo aproveita essa oportunidade e depois, quando percebe, já é tarde. Porque não adianta querer fazer as rezas, e passar por esse processo, depois de dois anos.

Essas rezas precisam de um quórum mínimo de dez pessoas. Isso tem a ver com a ideia de que, se eu estou enlutado e fico sozinho, eu retroalimento minha dor e minha angústia. Quando há dez pessoas presentes, poderá haver um que está celebrando que o filho entrou na faculdade, por exemplo. Isso, automaticamente, me ajuda a entender que, ainda que eu esteja em um momento triste, possa me alegrar, por empatia, por outra pessoa. E vice-versa. É um momento de contradança psicológica, sabendo que a vida vai ter os dois. Hoje estou desse lado, mas amanhã poderei estar celebrando alguma coisa. Isso tem a força do quórum mínimo.

Quais são as outras etapas do luto?

 Depois da etapa do sepultamento e dos primeiros sete dias, há os 30 dias. Ainda é uma fase de recuperação. As rezas ocorrem na sinagoga e não mais em casa. O luto funciona de forma irregular, haverá dias em que a pessoa vai querer ir rezar e outros que não. Depois desses 30 dias, você tem que voltar à vida, à rotina normal. Não pode ficar remoendo o luto. O último ciclo é o ano, que fecha o ciclo de luto. O judaísmo diz que depois de um ano você está proibido de dar pêsames. Por quê? Porque já foi. Se não, as pessoas utilizam o luto para outras coisas que não tem nada a ver com o luto. Todo ano, no aniversário do falecimento, você faz uma reza, uma contribuição filantrópica em homenagem à pessoa, e retoma as memórias do morto. A tradição judaica te obriga a manter essa memória acesa. Porque no dia a dia ninguém acorda pensando em tudo isso.

O judaísmo defende a imortalidade da alma?

Na Igreja Católica, as crenças ocorrem de forma vertical. Há um papa que diz como as coisas são e não há alternativas. Na judaica, elas são horizontais. Há várias possibilidades. Não há uma única voz oficial. Se você falar com 35 rabinos, terá 35 versões diferentes. É bem mais caótico e menos regrado. O judeu acredita que a vida tem continuidade. Agora, como essa continuidade se dá é onde entram as interpretações. Para uns, a continuidade significa continuarmos através dos filhos, da família. Não apenas família biológica, mas pode ser também um professor, um mestre. O ponto de consenso é que a morte não é o fim da vida. Na medida em que você mantém a pessoa acesa, ela continua te inspirando e é eterna.

A ideia de haver uma terra dos mortos e de que um dia eles poderão ser ressuscitados é figurativa?

 Nessa questão já não temos tanta unanimidade. Discute-se se isso é uma metáfora ou se é literal. Se é poesia ou prosa. Eu acho que é poesia. Na bíblia, há uma visão do vale dos ossos, do profeta Ezequiel, que começam a ter o processo inverso de virar ossos, ganhando tendões, carne, pele, até ressuscitarem. Para mim, é metáfora. Eu não acredito que as pessoas vão ressuscitar, ainda que alguns colegas meus, rabinos, acreditem que sim. E falam que o processo vai começar pelo Monte das Oliveiras em Jerusalém. Por isso, é o cemitério mais caro da galáxia.

Como você descreveria Deus para uma criança?

O problema da pergunta é que a tradição judaica tem diferentes maneiras de enxergar como é Deus. É difícil você encontrar uma única maneira. Mas é claro que você tem que falar de Deus com as crianças desde cedo. Falar sobre a morte também e incluí-las nos rituais. Essa coisa de criança não poder ir ao cemitério é uma bobagem. Elas lidam com a morte o tempo todo, do Rei Leão até o Bambi, sem falar dos filmes mais sofisticados. Qual é o sentido da criança ver os pais chorando e não saber por que? Isso alimenta fantasias que depõem contra a criança, porque ela vai criar as piores fantasias e poderá achar que o problema é com ela, que ela fez alguma coisa errada. Tem pessoas que falam que o avô virou uma estrelinha. Que estrelinha?

É preciso ajudar a criança no momento de tristeza e incluí-la nos rituais com toda a família. Também é uma maneira de mostrar para a família a ordem reversa. No momento que você perde o ente querido, você vê no seu filho ou filha, o futuro. Portanto, ele é importante para dar forças. A criança é a garantia de continuidade.

Antes de falar com uma criança sobre Deus, você tem que falar com você sobre Deus. Para saber se você acredita em Deus. Não adianta falar algo para seu filho que você não acredita. O problema é ser hipócrita em falar coisas que você não acredita só por causa do “tem que”. E não tem problema falar uma coisa hoje e amanhã falar outra, desde que você esteja coerente com consigo mesmo. Não adianta falar para a criança ir perguntar ao rabino sobre Deus e morte. Ela quer que a mãe ou o pai respondam e não que uma autoridade externa. Não se pode transferir a responsabilidade.

Como é feita a preparação do corpo, o ritual da limpeza, para o enterro?

É feita por um grupo de voluntários da Chevra Kadisha (Associação de Cemitérios Israelitas). Esse talvez seja o trabalho voluntário mais importante que alguém possa fazer. É muito altruísta, demonstra carinho e amor nessa despedida. Ser lavado significa ficar puro e preparado para uma viagem.

Em cemitérios tradicionais, há a exumação de corpos. No judaísmo o corpo nunca mais pode ser tocado?

O corpo não é desenterrado no judaísmo. Mas a lei judaica tem um princípio maior que diz: a lei local é mais importante do que a lei judaica. Por tanto, em algumas circunstâncias, quando a lei manda (em casos de morte duvidosa, por exemplo), pode-se desenterrar o corpo.

O consolo em casos de morte prematura, de jovens, é diferente?

 Não. Essa história de que o jovem foi chamado por Deus, que Deus levou, é uma besteira. Quem vai acreditar num Deus que rouba os filhos? Quando as pessoas estão desestruturadas, apelam para explicações que não fazem sentido. O problema é acharmos que nosso prazo de validade é de 120 anos. Na verdade, não temos prazo de validade e não temos hora certa para morrer. Isso também não está vinculado a ser uma pessoa boa ou ruim. Há nazistas que morreram com cem anos.

O aborto é legalizado em Israel. Como você orienta as pessoas que solicitam sua opinião a respeito?

Na tradição judaica, o aborto é permitido dentro de certas circunstâncias. Não é um método anticoncepcional. Como rabino, eu posso orientar mas a decisão final é da mulher. O feto é uma parte da mulher. Desde o momento em que está dentro da mãe e apresenta riscos, não apenas físicos mas também espirituais e psicológicos, pode ser evitado. Uma jovem de 15 anos sem capacidade de ser mãe apresenta risco tão grave quanto um problema de coração. A lei judaica estabelece que em casos de natimorto o luto só começa após 30 dias da morte para evitar que os pais fiquem ligados ao natimorto e não queiram mais filhos. Porém, nos últimos anos, foram criadas rezas específicas para o aborto, tanto o espontâneo quanto o provocado.

O que o judaísmo diz sobre a comunicação com mortos e a reencarnação das almas?

Comunicação com mortos e reencarnação das almas não é algo que tem muitos adeptos dentro da tradição judaica. A comunicação que existe no judaísmo tem a ver com as coisas que as pessoas deixaram, seu legado e a forma como continuam inspirando os vivos.

A consciência é considerada algo a parte do cérebro?

Não há separação entre corpo e alma. É uma unidade.

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Rabino Adrián Gottfried

Leia mais em:

A morte segundo as religiões

Entrevistas

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A morte segundo o Budismo da tradição Bon https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/04/a-morte-segundo-o-budismo-da-tradicao-bon/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/04/a-morte-segundo-o-budismo-da-tradicao-bon/#respond Thu, 04 Feb 2016 11:28:09 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=832 O Budismo da tradição Bon é “a mais antiga tradição espiritual do Tibet e inclui ensinamentos e práticas aplicáveis a todas as partes da vida, incluindo nossa relação com as qualidades elementais da natureza, nosso comportamento ético e moral, o desenvolvimento do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade”.

Essa afirmação é da Ligmincha International, instituição internacional que tem uma represente brasileira, a Ligmincha Brasil – com a missão de preservar o Budismo Bon no Brasil. Para isso, organiza palestras, cursos online gratuitos, livros, documentários e workshops com o Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche, que virá ao Brasil em 11, 12 e 13 de março para o workshop “Conectando-se com o Universo Vivo: Ensinamentos sobre os Cinco Elementos”.

Conversei com Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche sobre a visão da morte dentro de sua tradição. “Tenzin” se refere a um lama, sacerdote budista. Geshe é o título de “doutor em budismo” e de yôgui – quer dizer que ele não é monge, é casado e tem um filho. Rinpoche significa precioso em tibetano. É um título usado para indicar um alto lama, geralmente reconhecido como uma nova emanação de um mestre antigo.

Ele é autor dos livros: “A Cura Através da Forma, da Energia e da Luz” – (ed. Pensamento,2 005); “Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono” (ed. Devir, 2010); “Maravilhas Da Mente Natural” (Ed. Devir, 2011); “Despertando o Corpo Sagrado – Yogas Tibetanos da Respiração e do Movimento” (Ed. Devir, 2013); “Despertando a Mente Luminosa” (Ed. Devir, 2015).

A entrevista foi feita em inglês, por skype, e traduzida por mim. Procurei me manter o mais fiel possível à sua forma de se expressar. Boa leitura.

Veja mais na série: “a morte segundo as religiões”.

 Nas suas palestras, você menciona 5 elementos necessários para a criação (água, fogo, terra, ar e espaço). Como esses elementos se relacionam no processo de morte?

Qualquer criação, seja um lago, uma montanha ou uma casa, segue uma sequência determinada. Se você quiser construir uma casa, primeiro você precisa da terra (do espaço no qual ela será construída), depois você passa para o processo da construção em si, onde você precisará da água, do cimento, de todos os elementos concretos para a construção. O corpo humano segue o mesmo princípio, ele vem da chamada consciência, que surge do espaço profundo (e seria o elemento espaço, como chamamos) e aí vem o vento, o ar, o suspiro, que chamamos de prana ou tchi. Há um vento específico que chamamos de karmic Wind (vento cármico) que produz o fogo. O fogo e o vento produzem a umidade necessária para a existência do corpo físico. Cada elemento trará uma energia ao corpo físico. O elemento terra remete à carne, o elemento água seria o sangue, o fogo é o chi do corpo – o sistema digestivo, o vento é nossa respiração e o espaço é a consciência. A sequência da criação é espaço – vento – fogo – água e terra.

A sequência da dissolução (morte) é oposta à da criação. Quando morremos, a dissolução ocorrerá da terra ao espaço (terra- água – fogo – vento e espaço).

No momento da morte, as pessoas leem uma prece chamada Bardo por 3 dias e 4 noites, por 24 horas sem parar. Essa prece fala sobre o processo da dissolução do corpo, como ele ocorre e por que. Também menciona que não devemos teme-lo. É todo um processo que envolve uma série de conhecimentos a respeito.

Observação da Camila: o Tenzin me enviou a prece. Ela diz que quando a energia do elemento terra se dissolve em água, experienciamos o colapso do corpo, com visões esfumaçadas e miragens. Quando a energia da água se dissolve no fogo, o corpo empalidece e a pessoa fica com muita sede, com a língua seca. Há visões de enchentes. Quando a energia do fogo se dissolve no vento, o corpo fica frio e os canais não podem mais ser sustentados (os budistas e yôgues acreditam que as energias sutis do corpo passam por estruturas que chamam de canais). A pessoa tem visões de “moscas de fogo”. Quando a energia do vento se dissolve na consciência, a respiração para, os olhos giram para cima e há visões como a de assoprar uma lamparina. Quando a consciência se dissolve na base de tudo, a sensação dos órgãos internos cessa.

Como alguém pode meditar sobre a morte e quais aprendizados pode-se tirar disso?

 Uma das coisas mais desafiadoras e difíceis que temos como seres humanos é nos adaptarmos a mudanças em nossas vidas, independente de serem mudanças boas ou ruins. A ideia de mudança é assustadora e é muito difícil querermos mudar. Então, como um ser humano, sabemos menos sobre a beleza da nossa existência e mais sobre aquilo que consideramos ser nosso, nos pertencer: minha vida, meu marido, meu trabalho. E quando perdemos algumas dessas coisas, temos muita dificuldade de processar a perda.

Mudanças são muito difíceis e a morte é uma grande mudança, por isso ela é difícil de ser aceita. As pessoas acham que a morte é o fim das coisas, ela é vista como um fracasso. É difícil aceitar um fracasso, é difícil aceitar um fim, é difícil aceitar o desconhecido, é difícil aceitar o não ter o controle sobre alguma coisa. Então, em nosso sistema de meditação, tentamos encarar a realidade da morte: ela existe, vai acontecer e não adianta evitá-la como nossa cultura faz. Por isso, vamos falar a respeito, vamos sentir, vamos nos preparar para morrer, e assim, vamos morrer melhor. Não significa que não amamos a vida e uns aos outros, mas sim que aproveitamos a vida e estamos, ao mesmo tempo, nos preparando para a morte. Tentamos atingir um momento de profunda meditação, de calma e silêncio interno e entrar num estado onde a consciência atinge seu estado de “espaço”, no qual você percebe que não existe um fim, que na essência você não vai mudar, porque o espaço não muda. Uma nuvem pode mudar, ventos podem ir e vir, tempestades podem ir e vir, mas não poderão afetar o espaço. Da mesma forma, você envelhece, adoece, várias mudanças ocorrem, mas você nunca vai mudar. Se você experienciar esse estado mais vezes, terá menos medo da morte e poderá se preparar melhor. Recomendo a leitura do livro “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer (ed. Palas-Athena, 2015)” e o meu livro “Os Yoga Tibetanos do Sonho e do Sono” (ed. Devir, 2010). Esse livro fala sobre como o sonho está relacionado com a morte, na medida em que a prática de sonhar lucidamente pode ajudar na preparação para a morte.

Como você recomendaria falar sobre morte com crianças?

Crianças já falam sobre morte entre elas. Então eu acho que, ao invés de falar sobre morte com as crianças, deveríamos escutá-las quando elas falam sobre a morte entre si. Isso me parece mais importante. Aí você pode entrar com cuidado na discussão, falando que a morte não é algo errado, que é algo natural, que elas não precisam ter medo, que é ok falar a respeito. Um dia, meu filho de dez anos estava triste refletindo sobre a morte. Ele me perguntou se eu ia morrer um dia e eu disse que sim. Ele não queria que as pessoas morressem, não entendia porque todo mundo tinha que morrer. E comentou que na próxima reencarnação queria ter o mesmo pai e a mesma mãe, não queria começar tudo de novo com “estranhos” (risos). Em um minuto, ele estava chorando e logo em seguida mudou de assunto completamente – me disse que gostaria de casar com uma mulher tibetana mas havia poucas tibetanas nos Estados Unidos (onde vivemos). Ele passou do assunto “morte” para planejar sua vida.

Você acredita que a morte do corpo é necessária para a raça humana? Poderíamos ter um corpo imortal com os avanços da medicina, por exemplo?

A morte do corpo físico é muito importante para o processo. Sua morte nessa Terra é tão importante quanto seu nascimento nessa Terra.

Podemos nascer em outros planetas?

Claro. E também podemos nascer nessa Terra em qualquer outra forma, como pássaros e assim por diante.

Por que não podemos acessar esses outros universos?

Esqueça os outros planetas, temos que antes de tudo aprender a nos comunicar entre nós, nesse planeta aqui. Aí podemos tentar nos comunicar com outros universos (risos).

Você costuma dizer que nós não envelhecemos e não morremos. Em que sentido isso ocorre?

No sentido de que nossa essência – a consciência – é um espaço além do tempo e não envelhece. Se você lembrar de um momento em que estava triste ou chorando, você pode pensar que estava perdendo alguma coisa naquele momento. Mas há muitas coisas que você não estava perdendo naquele momento. Você não está perdendo seu corpo, seus olhos, seus pais, sua casa. Mas você não pensa nisso, você pensa na perda. Temos a tendência de focar no que não está durando, no que estamos perdendo.

O sonho lúcido comentado pelo budismo se assemelha a conceitos como a projeção astral (ou projeção consciente) e experiências fora do corpo?

Não entendo muito bem o que as pessoas querem dizer com projeção astral, mas as pessoas têm a tendência de se desconectar de seu corpo e se desconectar da realidade. Em nossos ensinamentos, não recomendamos isso. A prática do sonho lúcido é a habilidade de trazer maior flexibilidade e conscientização ao mundo real. No mundo não real não temos flexibilidade, ficamos presos, emperrados. No sonho, temos essa flexibilidade e maior liberdade. Então seria trazer esse comportamento de sonho para a realidade, com liberdade total.

O que significa, na prática, ter essa liberdade total?

Não tomar decisões com base em medos e esperanças, mas sim na conscientização (awareness) e naquilo que a situação requer. Não seria focar no presente, mas sim estar no presente, baseado no que o presente requer e não nas necessidades dos seus medos. Por exemplo, quando um cristal brilha, o cristal não planeja brilhar e ele não ficará ofendido se você falar que o brilho dele não é tão bom. Se a mente precisar brilhar, ela brilhará, mas se não houver uma razão para brilhar, ela não brilhará. Não há uma personalidade. Liberdade total é não ter personalidade.

Há evidências que suportam alegações de reencarnação?

Pessoalmente, eu prefiro não falar muito sobre isso. Mas a Universidade de Virginia tem feito um trabalho grande sobre as pessoas que lembram de suas vidas passadas e eu recomendo que os interessados olhem para esse trabalho acadêmico. (observação da Camila: sobre isso, encontrei os trabalhos de Ian Stevenson, que foi o diretor do departamento de psiquiatria da Universidade de Virginia e tem pesquisas e livros a respeito).

Mente e cérebro são a mesma coisa?

São diferentes. O cérebro é o suporte da mente, como uma casa. A mente já está presente antes do cérebro existir. Muitas pessoas sem teto pensam que elas têm uma casa, e elas têm, porque o universo é a casa delas. É difícil ver o universo como sua casa. É uma perspectiva completamente diferente de espaço. Demências muitas vezes não estão apenas associadas ao cérebro, porque pode haver a interferência de componentes cármicos, por exemplo.

Há formas de provar que são diferentes?

Os neurologistas falam muito em plasticidade do cérebro hoje em dia. Mas o cérebro não expande sozinho, alguém faz esse processo. Isso é um sinal de que a mente está presente e influencia o cérebro. A mente pode mudar as químicas do cérebro, o tamanho do cérebro, a flexibilidade do cérebro. Esses são sinais claros e eu tenho certeza de que outros virão.

Há alguma questão sobre consciência, corpo, vida ou morte que a ciência ainda não conseguiu responder?

Eu tenho certeza de que há muito que a ciência não sabe e continuará não sabendo totalmente se não mudar sua metodologia. A ciência sempre requer que algo seja repetido. Mas num nível muito profundo, a repetição é sempre criada pela mente que está buscando um sentido. Então, objetivamente, é muito difícil de analisar, porque a mente ofusca tudo.

Há uma relação entre doenças físicas e a mente?

Sim, todas as doenças físicas são um produto da mente. A mente pode criar, prevenir, curar, ou pode piorar uma doença. Se a mente está num lugar meditativo de silêncio e quietude, ela vai prevenir doenças. Se a mente estiver totalmente desconectada com isso e se projetar nos seus medos, fará a doença piorar. O instrumento para colocar a mente nesse local é a meditação. É claro que outras coisas ajudam, como uma boa massagem, o contato com a natureza, estar ao lado de pessoas boas… Tudo aquilo que oferecer o mesmo resultado que a meditação oferece.

O que é o Budismo Bon e qual sua diferença em relação ao Budismo Tibetano?

O Bon é a tradição mais antiga do Tibet, a mais anciã, que há existe há milhares de anos, antes do Budismo Tibetano. Muitos ensinamentos são semelhantes e outros tornaram-se semelhantes ao longo do tempo. O Budismo Bon é mais conectado com os elementos (os 5 elementos) e com a natureza. Alguns cânones (um conjunto de textos sagrados) são diferentes, algumas deidades são diferentes, a ênfase no trabalho com os elementos e com a natureza é bem diferente também, mas no que se refere a praticar compaixão, acreditar em carma e reencarnação é o mesmo.

Porque a cremação é preferível ao enterro?

De maneira geral, a cremação é a dissolução do corpo no espaço e nesse sentido parece ser uma forma mais limpa de dissolução do que deixar algo para trás (como no enterro). Tipicamente, deve-se esperar 3 dias e 4 noites para rezas, antes da cremação.

Você pode falar com os mortos?

Eu não cheguei a falar, mas tive uma sensação de comunicação quando meus pais morreram. Mas é possível falar com os mortos sim.

Você chora quando alguém que gosta muito morre?

Sim, eu chorei quando minha mãe morreu. É um sofrimento natural. É bom poder experienciar o luto e expressá-lo.

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Rogelio Flores
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A morte segundo a conscienciologia https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/01/28/a-morte-segundo-a-conscienciologia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/01/28/a-morte-segundo-a-conscienciologia/#respond Thu, 28 Jan 2016 15:13:53 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=828 A conscienciologia coloca-se como o estudo integral da consciência. O termo foi proposto publicamente pela primeira vez em 1981 por um conjunto de pesquisadores liderados pelo médico brasileiro Waldo Vieira, morto no ano passado. Partem do princípio de que a consciência é independente do cérebro e teria a capacidade de se projetar para fora do corpo de forma autoconsciente, em dimensões chamadas de extrafísicas. Por isso, seu principal campo de estudo é a projeciologia, popularmente conhecida como projeção astral ou experiência fora do corpo (OBE). É comum escutarmos pessoas comentarem que tiveram um sonho muito lúcido ou que voaram pelo quarto e viram seu corpo dormindo na cama. Para a conscienciologia, não há sonhos lúcidos, mas sim projeções da consciência.Também estudam fenômenos como a telepatia.

Como o espiritismo, consideram a vida após a morte e a reencarnação, mas preocupam-se em utilizar um vocabulário mais objetivo. Um slogan muito divulgado é o “princípio da descrença”, segundo o qual “não se deve acreditar em nada, pois o mais importante para cada indivíduo é usar o senso crítico, o raciocínio, e aprender com as próprias experiências”. Uma grande diferença que se coloca em relação ao espiritismo é não usar o papel de um intermediário para a comunicação com outras consciências, como o médium. Cada um deve ser treinado para tornar-se seu próprio “médium”. O autoexperimento é usado para o fortalecimento de teorias relacionadas aos fenômenos observados.

Conversei com Luiz Cláudio Pereira Costa, professor e palestrante, coordenador do Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia (IIPC-Brasília), uma instituição educacional que tem o título de “utilidade pública federal”. Segundo o site do IIPC, trata-se de um instituto de pesquisa sobre as ciências da projeciologia e da ciensciologia. Nas perguntas, procurei usar terminologias e conceitos oferecidos por Luiz Claúdio, para maior identificação e respeito.

 

O que é a conscienciologia?

Hoje, a conscienciologia é uma proposta de ciência focada em um novo paradigma – o estudo da consciência de forma integral, partindo de premissas que envolvem a consciência que se manifesta em outras dimensões. É a consciência que interage com as energias e as bioenergias e a consciência que tem múltiplas vidas (aquilo que as religiões chamam de reencarnação). A conscienciologia não é uma religião, mas ela estuda as manifestações que as religiões se apropriam. Ela não é um movimento estritamente filosófico, porque ela é experimental. Mas foca muito na auto experimentação, ou seja, o próprio pesquisador também é objeto de pesquisa. Por isso, precisamos de um novo paradigma que sirva de base para trabalhar com algumas proposições que a ciência tradicional não considera.

Ela é uma dissidência do espiritismo?

O Waldo Vieira, um dos propositores da conscienciologia, foi um dissidente do espiritismo. Ele nasceu em berço espírita e, em dado momento, propôs o estudo da projeção consciente, da saída da consciência para fora do corpo. Sua proposta não foi muito bem aceita pelo espiritismo, por eles terem uma grande dedicação aos médiuns – papel descartado pelo Waldo, na medida em que ele coloca a própria pessoa como capaz de entrar em contato com outras dimensões para explorar o conhecimento.

A não presença de intermediários – os médiuns – seria a principal diferença entre a conscienciologia e o espiritismo?

A principal diferença é que a conscienciologia não vai se pautar em crenças. Um slogan que é muito utilizado é o “princípio da descrença”, que é não acreditar em nada do que é dito em palestras e livros, mas sim buscar elaborar suas próprias verdades de acordo com suas próprias experiências. A verdade na ciência é relativa, ela é uma descrição da realidade que serve para você até que alguém venha e a refute. Então, quando você parte do princípio de que tudo o que está sendo dito não é verdade, você fica, de certa forma, imune a qualquer lavagem cerebral ou a qualquer dogma que é imposto para você. Você mesmo vai experimentando e descrevendo a realidade. E, claro, comparando com os outros pesquisadores e buscando consensos.

Que tipos de experimentos são feitos?

A projeção da consciência foi a primeira proposta de experimento. A projeção consciente tem uma utilidade, ela é algo sério, não é algo de lazer ou entretenimento. Da projeção consciente, evoluímos para o estudo da própria consciência. Então, a projeção consciente virou uma ferramenta de autodesenvolvimento. A partir disso começamos a abordar vários outros fenômenos que se relacionam com a projeção consciente.

Quais outros fenômenos são estudados?

O estudo de vidas passadas utilizando a projeção consciente, por exemplo. Fazemos experimentos para perceber o processo de interação energética, buscando alguns experimentos para trabalhar aquilo que chamamos de corpo energético, que seria um outro corpo que a consciência possui. Esse corpo possibilita fenômenos como clarividência, clariaudiência, fenômenos de retrocognição, que é relembrar vidas passadas, ou precognição, que é captar fatos que ainda vão ocorrer – aquilo que chamam de premonição. Trabalhando com a bioenergia, conseguimos desencadear todos esses fenômenos e eles podem ser usados para o seu próprio desenvolvimento.

Como você pode diferenciar uma experiência real de uma fantasia?

Precisamos entender todos os tipos de estados alterados da consciência para poder diferenciar aquilo que estamos vivenciando. E temos que partir de hipóteses. Ensinamos a própria pessoa a investigar para diferenciar um sonho de uma projeção, por exemplo. Mas a comprovação é da pessoa, o processo ainda é muito subjetivo.

Há formas mais objetivas de validação?

Sim, existem experimentos feitos com energia como os de telepatia e os de precognição que acabam se comprovando. Mas é necessário uma metodologia que permita verificar de fato se o fenômeno ocorreu. Eu já vi, em sala de aula, experimentos como o de colocar objetos em outras salas e as pessoas se projetarem até lá e descreverem com exatidão cada objeto. Eu precisaria repetir esse experimento diversas vezes para provar que essa capacidade realmente existe, mas em algum momento a pessoa falha. Parece que tem uma outra variável que a gente não controla.

O que faz algumas pessoas serem mais propícias do que outras para experienciar uma projeção da consciência?

É uma pergunta muito comum em sala de aula. Algo que pode contribuir para uma maior predisposição é ter trabalhado com esse tipo de energia em outras vidas, mesmo que tenha sido através de alguma religião ou algum tipo de ritual. Abusos e medos que são colocados pela família, e pela sociedade, atrapalham bastante essa disposição.

Porque algumas pessoas lembram de sonhos, ou projeções, e outras não?

O interesse por esse tipo de estudo interfere muito. Existem técnicas para trabalhar a memória. Muitas vezes, a dificuldade está no retorno da consciência para o corpo físico. Se ela desenvolver a capacidade de memória do corpo físico, ela pode começar a lembrar das suas próprias projeções. Uma das técnicas é ter um caderninho ao lado da cama para relatar tudo o que aconteceu durante a noite, mesmo quando não se lembrar de nada. Tem que ter persistência e paciência. Também há a autossugestão – antes de dormir, você pode emitir pensamentos sugestivos como “eu vou despertar no extrafísico”, “eu vou lembrar da minha projeção”. Muitas pessoas começam a despertar no próprio quarto e a ver seu corpo na cama.

Como diferenciar um sonho de uma projeção?

Há uma lista de fatores que podem ser usados para verificar se você está projetado ou não. O sonho é uma criação subjetiva, onírica. Isso quer dizer que ter um alto nível de lucidez, de racionalidade, indica que você está projetado. O sonho é repleto de absurdos cognitivos. Você se depara com situações muito estranhas em sonhos sem criticidade – você não é crítico em relação a elas. Se você para em algum momento e tem a consciência de que está sonhando, é um sinal claro de que é uma projeção e não um sonho. Sonhos lúcidos não são sonhos, são projeções com um nível de lucidez ainda um pouco mais baixos.

Também é possível verificar algumas informações que você capta quando está fora do corpo. Em sonhos isso não ocorre. Outra coisa é encontrar alguém que vai lembrar da mesma projeção – o que não ocorre em sonho, já que ele não é compartilhado. Encontrar pessoas que você nunca viu na vida e ter uma conversa de alto nível, de conhecimento ou de acolhimento, também indica uma projeção. Outro exemplo é ir a lugares que você nunca foi e depois confirmar a sua existência. Uma característica forte também é voar. Geralmente, os voos não são sonhos, mas sim projeções.

O que alguém pode fazer durante uma projeção consciente?

Isso é importante porque quando a pessoa tem uma ausência de sentido, ela não avança. Às vezes, encontramos pessoas que saem do corpo e não têm ideia do que fazer com isso. Tem muita coisa para você investigar, Primeiro, entender porque você funciona de um jeito, porque você tem uma certa personalidade ou determinado traço que te atrapalha. Algumas dessas condições podem ser investigadas quando você está fora do corpo porque você sente as manifestações emocionais mais intensas.

Também é possível investigar vidas passadas e tentar se conectar com alguém que possa te orientar. Outra possibilidade é tentar acessar uma memória integral da consciência, o “bolo memória”, que é o conjunto de todas as memórias de todas as vidas de uma pessoa. Pode ser útil para essa vida em questão.

Há alguma relação entre a conscienciologia e a física quântica?

A conscienciologia vai usar uma base de premissas para construir seu conhecimento que difere muito da base da física quântica. A física quântica é uma ciência que quebrou um paradigma e passou a investigar a matéria com outro enfoque. A dimensão da conscienciologia é uma dimensão da consciência, ou seja, é uma dimensão que uma consciência se manifesta. Ela não é física. Eu não posso relacionar essa dimensão com a da física quântica, porque as bases de cada uma são diferentes. Uma coisa que é interessante nas duas é que ambas propõe uma quebra de paradigma.

Você acha que um dia a tecnologia pode se apropriar de fenômenos como a telepatia e a projeção consciente?

Penso que sim. Hoje, não temos a instrumentação para provar que uma pessoa saiu do corpo, por exemplo. Ela pode descrever os objetos que estão na outra sala, mas eu não consigo filmar essa consciência – que os espíritas chamam de espíritos – indo até lá e identificando os objetos. Apostamos que isso vá avançar para captarmos alguns desses processos de energia, inclusive o da telepatia.

O que é a morte para a conscienciologia?

A morte é apenas uma transição de dimensão. É um descarte, uma desativação de um corpo biológico e o retorno a uma dimensão extrafísica. Essa abordagem não difere muito da do espiritismo, mas procuramos não utilizar os mesmos termos, porque alguns termos provocam emoções que atrapalham a comunicação. Chamamos a morte de “descarte do soma” e não de desencarne. No momento da morte, a pessoa perde a vitalização do corpo físico e com isso começa a descartar lentamente aquele corpo e passa a ficar mais livre em outra dimensão. Essa consciência passa a ganhar mais lucidez, porque o corpo físico é um conjunto de energias mais densas que limitam a lucidez da consciência. É um processo muito interessante que as pessoas ainda encaram com muito temor.

Essa consciência mantém um gênero após a morte, por exemplo?

Consideramos que uma pessoa tenha múltiplas vidas e possa vir com um sexo diferente. Mas ao descartar o corpo físico, ela mantém a mesma fisionomia da sua última vida. Isso tem algumas funcionalidades como a de ser reconhecida por parentes quando ela aparece para os vivos. Muitas vezes, a consciência pode transmutar para o visual da vida que teve uma maior evolução, mas a maioria escolhe a aparência da última vida.

É dolorido passar por esse processo de lucidez com a morte?

A lógica dessa vida humana é interessante. Vamos nos colocando em cenários – que são as vidas nos corpos físicos – e nesse psicodrama real vamos evoluindo, desenvolvendo uma maturidade que nos dará uma capacidade para entender todo o mecanismo da vida, o que rege as dimensões, para onde vamos depois da morte, qual é o propósito da vida, essas perguntas filosóficas… Quando renascemos, perdemos essa memória e ficamos buscando, pela intuição, o sentido da vida. Ainda somos incapazes de romper com as dificuldades de um corpo físico mais denso.

Há um ditado interessante que diz que quando você eleva a sua vista, você não vê mais fronteiras. A projeção consciente é isso. Você eleva sua visão e pode quebrar seus paradigmas pessoais, seus preconceitos.

Durante uma projeção da consciência é possível encontrar alguém que já morreu?

Sim, podemos encontrar uma pessoa que já descartou seu corpo físico. Já aconteceu comigo, quando encontrei meu pai. Ele se aproximou com alguém que eu não conhecia. Ele sabia que estava morto e relatou uma dificuldade em lidar com os pensamentos e com a memória depois da morte. Ele estava com ciclos de amnésia. Em alguns momentos, ele não lembrava da família. Ele estava se adaptando a um corpo extrafísico, já que estava pensando sem o uso de um cérebro físico. Existem pessoas que ainda não sabem que morreram. Existem consciências que ficam adormecidas, aguardando um juízo final. Ou ficam achando que ainda estão vivas e entram numa psicose de criar um ambiente que a proteje de uma realidade que ela não quer ver, como ocorre no filme “O Sexto Sentido”. É um mecanismo de defesa utilizado até que a pessoa tenha maturidade para entender que morreu. Em casos de acidentes, quando a transição para o extrafísico é muito rápida, pode ser mais difícil.

Uma leitora me escreveu relatando que a conscienciologia foi a melhor forma que ela encontrou para lidar com o luto da perda de seu filho de 16 anos. De que forma vocês podem ajudar no luto?

Com o autoconhecimento. Primeiro, entendendo quem ela é nesse contexto de vida. Esse entendimento não ocorrerá por uma crença, mas sim pela prática da projeção consciente, que dará um indicativo de que o processo da morte não é a finitude do ser, mas sim do corpo biológico.

Outro processo que ela pode investigar é tentar entender porque esse filho partiu mais cedo. Um encontro com o filho pode ajudar bastante também. Na nossa atuação, percebemos consciências amparadoras, no extrafísico, que ajudam outras que passaram recentemente pelo processo de morte. Podemos fazer um trabalho junto com essas consciências, que chamamos de “Tarefa Energética Pessoal”.

Uma diferença em relação ao centro espírita é não criarmos dependência com as pessoas, porque não usamos um médium, mas sim procuramos capacitar a pessoa para ter autonomia evolutiva. A própria mãe entra em contato com o filho nesse caso. Já vi muito isso acontecer. Mas há casos em que há uma barreira que não conseguimos atuar.

Você tem ou tinha alguma religião específica?

Não sou religioso. Eu comecei a querer investigar fenômenos porque eu percebia esses fenômenos, eles ocorriam comigo. Então passei a frequentar vários movimentos que envolviam energia, como o reiki. Em algum momento cheguei no espiritismo, porque eu queria usar minhas percepções para fazer algum tipo de auxílio e o espiritismo tem essa abordagem assistencial. Trabalhei como médium durante 3 anos numa casa espírita e comecei a ter algumas divergências em relação a crenças colocadas. Eu não me identificava com a questão religiosa e acabei conhecendo o IIPC (Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia), onde iniciei com um trabalho voluntário.

Como a conscienciologia trabalha o tabu da morte?

A nossa maior fonte de angústia é a morte. A gente precisa caminhar para entender o processo da morte e não ter medo disso. A conscienciologia vai atuar nesse aspecto. Muitas pessoas chegam com medos e vamos buscar a raiz de cada um. Geralmente, a raiz é o medo da morte. Hoje, ainda existe uma cultura que reforça muito o processo emocional da morte, ou seja, você é obrigado a chorar em um enterro, porque é falta de educação não chorar. Eu já vi fazerem isso com crianças.

Como ocorre a morte do corpo físico?

Existe uma equipe técnica no plano extrafísico que auxilia na morte da pessoa. Eles ajudam o corpo de energia a ir se desconectando do corpo físico. Há um campo energético que precisa ser desativado e isso é feito de forma técnica por pessoas que sabem como fazê-lo. Eu atuo como auxiliar dessa equipe, agindo no corpo físico de acordo com orientações que recebo dessa equipe – as ações são sugestionadas na minha mente, como colocar a mão na testa da pessoa, ou no peito, ou seja, é um movimento direcionado. Eu percebo a consciência saindo do corpo e se aproximando de mim. A partir disso, os aparelhos passam a sinalizar que o corpo está morrendo.

Leia mais sobre esse tema no blog:

Experiências de quase morte – passagem de ida e volta para a morte

Mais em “entrevistas”:

A morte segundo o espiritismo

A morte segundo Frei Betto

Entrevista com o coveiro-filósofo Fininho

Entrevista com Eliane Brum

Entrevista com Ana Claudia Arantes – cuidados paliativos

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Ilustração do site do IIPC – Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia
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A morte segundo Frei Betto https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/01/20/a-morte-segundo-frei-betto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/01/20/a-morte-segundo-frei-betto/#respond Wed, 20 Jan 2016 12:14:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=820 “Morrer se tornou uma falta de aducação”, diz Frei Betto nesta entrevista realizada por e-mail e complementa: “nessa cultura da glamourização do corpo, para a qual a velhice é humilhação, tentamos nos convencer de que somos imortais….”. Ele prefere usar a palavra transvivivenciar para se referir à morte, e ao ser questionado sobre qual título daria para seu obituário, responde: “Transvivenciou um peregrino de Deus que viajava a bordo de um paradoxo”.

Como escrever seu próprio obituário

Seu livro infantil “Começo, Meio e Fim” (Rocco, 2014), sobre como falar sobre morte com as crianças, parte do princípio de que “a morte é um importante rito de passagem e quando a encaramos com naturalidade damos mais valor à vida”.

Frei Betto fala sobre suicídio, aborto, e o principal problema filosófico da atualidade – “a desistorização do tempo”.

Com 60 livros editados no Brasil e no exterior, vencedor e finalista de vários prêmios literários, esse Frade dominicano (uma ordem religiosa católica) nos oferece iscas para reflexões. Boa leitura.

Como a ordem dominicana ou a Teologia da Libertação veem a morte?

Encaramos a morte segundo as palavras de Jesus nos evangelhos – é uma travessia (= páscoa, passagem) desta vida para a vida eterna. Porque acreditamos no testemunho dos apóstolos de que a morte não venceu Jesus, conforme descrevo em meu romance “Um Homem Chamado Jesus” (ed. Rocco, 2009). Ele ressuscitou. É uma questão de fé.

Para onde vamos quando morremos? 

Para a plenitude do amor de Deus, que a linguagem expressa por metáforas – Céu, Reino de Deus etc. O Universo é o ventre de Deus. Quando nascemos, todos riem e nós choramos. Quando transvivenciamos (não gosto da palavra morte), todos choram e nós sorrimos.

Existe alma e espírito? Eles acabam com a morte?

Em meu livro “A Obra do Artista – Uma Visão Holística do Universo” (Ed. José Olympio, 2012) trabalho com os conceitos da física quântica, acentuando que toda matéria é energia condensada. Portanto, o espírito ou a alma estão em nosso coração e também na unha que acabamos de cortar. Somos uma unidade de matéria e espírito. Não há conflito entre os dois, exceto para cabeças platônicas… Por isso o apóstolo Paulo escreve que todo o Universo será resgatado em Cristo, e nós teremos, do outro lado da vida, um corpo espiritual… conceito difícil de ser assimilado por nossa cultura influenciada pela filosofia de Platão. O dualismo platônico não existe na Bíblia.

A morte segundo o espiritismo – entrevista com Heloísa Pires

Há um julgamento sobre nossos atos quando morremos?

Segundo os evangelhos, seremos julgados de acordo com as doses de amor e desamor ao longo desta vida. Mas também Jesus acentua que Deus é sumamente misericordioso, como o pai da parábola do filho pródigo. Penso que quanto mais somos capazes de amar nesta vida – e, portanto, desdobrar o nosso ego (fonte do ego-ísmo) – mais absorveremos a plenitude do amor de Deus.

O que te inspirou para escrever seu livro infantil “Começo, Meio e Fim” (ed. Rocco, 2014) – sobre falar de morte com as crianças?

Muitas famílias cometem o erro de não levar crianças em velórios e enterros ou cremações de entes queridos, como os avós. Para a criança, fica a sensação de que aquele pessoa amada foi abduzida… Isso me levou a escrever sobre a morte para crianças. É preciso desmistificar a morte, hoje banalizada pelo excesso de violência no noticiário, na TV e em filmes. A morte é um importante rito de passagem e quando a encaramos com naturalidade, damos mais valor à vida.

Você lembra do seu primeiro contato com a morte e como reagiu?

Sim, quando minha tia Dirce faleceu de pneumonia. Eu tinha 4 anos. O velório foi na sala da casa de meus avós maternos. Ali estava o caixão. Pedi um banquinho para poder chegar à altura de observar o corpo. Isso me fez bem.

Como aconselha alguém a lidar com um parente que está perto de morrer? 

Acompanhei muitos doentes terminais, como Tancredo Neúdves, Carlito Maia e outros menos conhecidos. Deve-se passar tranquilidade, orar com a pessoa (se ela tem fé), passar carinho (ficar de mãos dadas), ajudá-la a se resignar com o destino inelutável. Mesmo quando o enfermo não tem fé, pergunto se quer receber a bênção da saúde. Nunca ouvi um não. E quem mais me surpreendeu ao dizer sim foi Giocondo Dias, então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, quando o visitei no hospital em Moscou, conforme descrevo em “Paraíso Perdido – Viagens aos Países Socialistas”(Ed. Rocco, 2015).

Há um tabu da morte no Brasil? 

Sim, morrer se tornou uma falta de educação. Já não tem choro nem vela nem fita amarela. Da UTI segue-se para o rápido velório e, dali, para o enterro ou cremação. Não se guarda luto, nem se faz um culto pelo falecido. Isso porque tememos encarar a morte de frente. Nessa cultura da glamourização do corpo, para a qual a velhice é humilhação, tentamos nos convencer de que somos imortais… Até porque, à nossa volta, lidamos com incessantes mortes virtuais, do bonequinho do videogame às chacinas na periferia e aos filmes belicistas. Os outros morrem… eu não!!!

Qual é o principal problema filosófico dos nossos tempos? (ou um deles pelo menos)

A desistorização do tempo. Devido ao neoliberalismo, estamos perdendo a consciência do tempo como história. Tudo é aqui e agora… Ora, toda a cultura ocidental está apoiada na historicidade, que os hebreus assimilaram dos persas. Por isso ela é marcada por três eminentes judeus: Jesus, Marx e Freud. Sem a percepção do tempo como história, o legado deles perde o sentido. Mas o neoliberalismo insiste em afirmar que “a história acabou…”

O suicídio é um pecado ou um direito? 

Um direito exercido por quem já perdeu a saúde mental ou, como no caso de Frei Tito de Alencar Lima (Vide meu livro “Batismo de Sangue” ed. Rocco, vencedor do prêmio Jabuti em 1982), por quem teme perder o livre arbítrio. Como bem disse Dom Paulo Evaristo Arns, Tito não se matou, buscou do outro lado da vida a unidade perdida deste lado em consequências das cruéis torturas que sofreu.

Pecado é culpar um suicida.

O aborto é crime?  

Depende da lei de cada país. Sou pela descriminalização do aborto, embora contrário a ele, pois conheci muitas mulheres que abortaram, mas nenhuma que me tenha dito que foi “uma curtição”…

Você acha que um dia, com o avanço da tecnologia, poderemos deixar de morrer?

Minha fé no futuro da humanidade não chega a tanto… Como bem frisa Simone de Beauvoir em “Todos os Homens são Mortais” (ed. Nova Fronteira), seria muito enfadonho viver para sempre. Até os imortais da Academia Brasileira de Letras morrem…

Como você vê o apocalipse descrito na bíblia e a ressurreição dos mortos? Essa ressurreição poderia ser metafórica?

Sim, são imagens metafóricas para afirmar verdades de fé: o mundo e a humanidade têm começo, meio e fim, e a morte não tem a última palavra sobre a vida. Se a vida aqui é amorosa, do outro lado ela é terna.

Haverá um juízo final, sucedido por uma guerra final na história humana?

Pura mitologia. Ao morrer renascemos em Deus.

O Armagedom será uma batalha real?

Só no cinema.

Se você morresse hoje, teria algum arrependimento?

De não ter reservado mais tempo para orar e meditar.

Se você pudesse dar o título de seu próprio obituário publicado em um jornal como a Folha, qual seria?

Transvivenciou um peregrino de Deus que viajava a bordo de um paradoxo.

Frei Betto – Arquivo pessoal

Entrevista com o coveiro Fininho

Entrevista com Eliane Brum

Entrevista com a Dra Ana Claudia Arantes – a boa morte

Entrevista: a era dos adictos

Depoimento da Tanatopraxista

Depoimento da empreendedora funerária Mylena Cooper 

 

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