Um Death Cafe em São Paulo

Camila Appel

É sábado à tarde. Entro na pousada Ziláh, nos Jardins em São Paulo e cumprimento de leve algumas mulheres sentadas nas cadeiras da entrada. Será que elas estão aqui para falar de morte, também? Imagino que todos se perguntem isso sobre cada um que chega. Difícil não olhar os rostos e pensar porque ele ou ela saiu de casa em pleno sábado de sol para se unir a desconhecidos e conversar informalmente sobre um tema tão obscuro e incomum. Uma senhora à minha frente me faz questionar se ela tem sentido medo de envelhecer e por isso está se dispondo a esse diálogo. Um rapaz, jovem, levou minha imaginação para uma possível perda familiar recente, ou um parente muito doente em casa, necessitando de cuidados especiais, a cargo dele. Nem faço ideia sobre o que pensavam os que olhavam para mim.

Abri mesmo o sorriso quando vi bandejas de doces e sanduíches sendo levadas às salas de conversa. Nosso grupo foi logo dividido em dois: os veteranos, que já participaram de um encontro, e os novatos. Cada um com aproximadamente dez pessoas, idade média de 45. Era a quarta reunião do Death Cafe Sampa.

O Death Cafe é uma iniciativa mundial para incentivar grupos de discussão sobre o tema. Seu objetivo, como consta no site, é “aumentar a conscientização da morte com a visão de ajudar as pessoas a fazer o melhor de suas (finitas) vidas”.

O modelo do Death Café foi elaborado a partir das ideias de Bernard Crettaz, um sociólogo e antropólogo suíço, pioneiro na ideia de formar espaços para falar sobre o morrer. Ele diz que sua missão é liberar a morte do que ele chama de “tyrannical secrecy” (sigilo tirânico).

Desde setembro de 2011, já foram oferecidos 1.774 Death Cafés pelo mundo. São reuniões para falar sobre a morte, usando o nome e as diretrizes do Death Café. Os organizadores centrais o chamam de uma franquia social. Qualquer pessoa pode abrir um em sua cidade, ou seja, organizar um grupo de discussão sem agenda determinada, utilizando o nome, a metodologia, e os meios de divulgação do Death Café. Como pré-requisitos, colocam a necessidade de ser uma atividade não lucrativa, não ter tópicos pré-definidos, não “vender ideias”, não ser filiado a instituições e não se apresentar como um espaço de terapia. Uma recomendação é ter bolo ou algo doce na mesa para contribuir para um clima informal, indicado para se falar de tópicos aparentemente pesados. No momento, estão se organizando para abrir um Death Cafe físico em Londres – “um local para conversas e eventos destinados a facilitar o engajamento com a morte”. Por enquanto, os grupos do Death Cafe se encontram em cafés ou outros espaços como pousadas, que cedem o local, organizam chá, café, quitutes e cobram apenas pelo custo dos alimentos.

Em dezembro de 2014, o Death Café chegou ao Brasil com a iniciativa de Elca Rubinstein, economista formada pela USP. Elca trabalhou dezoito anos no Banco Mundial, em Washington, e conheceu os organizadores do Death Cafe numa conferência enquanto morava nos Estados Unidos: “Conversations on Death” (Conversas sobre a Morte). Interessou-se pela iniciativa e resolveu trazê-la ao Brasil.

No grupo do qual participei, Elca se apresentou dizendo “venho ao Death Cafe porque eu entendi que vou morrer, e eu estou curtindo a ideia de que essa consciência me possibilita planejar o futuro e, assim, viver melhor”. Uma de suas iniciativas em relação a esse planejamento é elaborar seu testamento vital e batalhar legalmente para que ele tenha valor jurídico. Logo depois, Elca convidou todos a se apresentar e dizer o porquê de estarem ali. Dessa rodada introdutória, surgiram diversos questionamentos e o debate se desenvolveu naturalmente, com depoimentos pessoais e reflexões que realmente não têm espaço para ocorrerem no dia a dia. Isso me pareceu o grande triunfo do Death Cafe, deixar com que a informalidade e a falta de agenda conduza estranhos a se abrirem e aprenderem com as experiências dos outros. Uma troca sem objetivos específicos, sem a busca por determinados resultados, apenas aceitar o simples ato de compartilhar.

Uma frase dita por um senhor me chamou atenção: “nós humanos, somos incapazes de aprender a perder”. Ele se referia à nossa relação com a perda da vida e a perda de entes queridos. Mencionou que, em enterros, os parentes falam três palavras sobre o falecido – sofreu, não sofreu, ficou tantos dias no hospital – e logo passam a discorrer sobre sua própria dor, deixando o falecido de certa forma de lado e focando em si, no seu sentimento de perda.

O medo da morte se revelou como tema predominante, e até mais do que isso, a qualidade do morrer, como o desejo de não ficar incapacitado e impotente, o que trouxe à mesa temas como sedação paliativa, eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia. “Me assusta o sofrimento, não a morte”, disse um dos participantes. Foi colocada a dificuldade em tomar uma decisão em relação ao outro, como decidir sobre a manutenção ou suspensão de tratamentos da mãe ou do pai, caso estejam incapacitados de tomar decisões. Para alguns, suspender um tratamento pode ser visto como uma desistência, “jogar a toalha”, um ato egoísta ou até covarde. Para outros, é um ato de humanidade, ao aliviar o sofrimento de alguém que se ama. Levantou-se a importância do testamento vital justamente para poupar filhos da possível culpa de terem que tomar esse tipo de decisão e sentir que participaram, de alguma forma, da morte dos pais.

As diferenças e semelhanças entre o suicídio assistido e o suicídio convencional me chamaram atenção por ser uma polêmica que eu nunca levantei nos posts sobre esse assunto. Alguns defenderam que não se pode comparar um jovem saudável que se mata com um paciente terminal que decide tirar a própria vida embasado num aparato legal e médico. Outros acham a comparação razoável, já que o jovem que se mata é aparentemente saudável, mas os distúrbios mentais podem ser tão ou até mais perigosos do que os físicos. E sempre levanta-se a possibilidade de o suicídio ser um direito do indivíduo, quaisquer que sejam suas razões, afirmação comum nesse tipo de debate. Sobre comparações entre a dor física e a dor emocional, senti que os presentes consideram mais difícil entender os desdobramentos da emocional.

No caso de pacientes com pouco prognóstico de vida, foi dito que a pessoa que sabe que vai morrer, pode ter um momento de paz ao perceber que ela pode escolher a forma como isso irá acontecer.

Na saída, perguntei aos participantes do outro grupo, dos veteranos, porque eles participam do Death Cafe. O principal motivo foi o fato de poder falar de forma leve sobre um tema tabu. Usaram frases como “desmitificar a morte” e “ter um espaço para uma conversa que não posso ter em casa”. Uma participante me disse que nunca conta para a família e para os amigos que está indo para um Death Café, “porque eles não iriam entender, achariam perda de tempo e as pessoas associam o falar da morte com negatividade, com mau agouro. Mas lidar com a realidade não é negativo, é necessário e produtivo”.

Como resultados do encontro, me falaram sobre uma maior liberdade em relação à vida, aceitação da morte, do envelhecimento e da doença. “Morte é algo natural, quem coloca o peso somos nós”, me disse um homem de 40 anos. Um senhor mencionou que “seu sistema de crenças vai se modificando e aos poucos, sua ideia sobre a morte se transforma”.

Muitos questionam o porquê de uma iniciativa como o Death Café, partindo do pressuposto de que ele se baseia numa curiosidade mórbida. A organizadora do Death Café em Portland fez um vídeo, “Why I Talk About Death”, para explicar seus motivos. Ela afirma que falar sobre morte aproxima as pessoas e que o medo da morte é fruto de passarmos uma vida inteira vendo-a como inimiga. Ela também menciona que o olhar para a morte é um chamado para viver a vida de forma mais plena. Não senti nada de mórbido no encontro, apenas um desejo sincero de expor reflexões e aprimorá-las.

Saí de lá com a impressão de que as reuniões de Death Cafe ao redor do mundo fazem parte de uma mudança de paradigma que uma hora ou outra vai acontecer. Antigamente, tínhamos uma história definida para contar sobre a morte, baseado nas religiões e na precariedade da ciência. Aos poucos, seremos levados a criar conceitos próprios, misturando aspectos da filosofia, da psicologia e da ciência para criar estruturas mentais que nos confortem. Tendo a achar que esse processo de individualização da morte possa acontecer. Uma onda de reflexão e conscientização pode ajudar a frear a tendência de estarmos cada vez mais isolando os moribundos da nossa sociedade, levados pela transferência da morte do contexto das casas para as instituições de saúde, o que levou alguns autores, como o sociólogo Norbert Elias, a falar em “higienização da morte”.

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