A autópsia é obrigatória?
É incômodo pensar no corpo de alguém que amamos todo recortado por uma autópsia. Não queremos que nos esfaqueiem nem em vida nem na morte, não importa se digam que o cérebro está desligado depois que morremos e não existe sistema nervoso central sem ele, ou seja, não existe dor. Mas a primeira indagação científica sobre haver consciência após a morte ou não já estremece as bases e aquele bisturi indagador pode ficar quietinho lá na caixinha dele.
Em algumas situações não haverá escolha, porque a autópsia pode ser obrigatória.
Há duas maneiras de morrer. Ou você morre do que é chamado de causa natural, que são doenças como câncer, infarto, derrames, doenças infecciosas como Aids e dengue, enfim, todas essas palavras arrepiantes. Ou você morre de causa externa, que são acidentes e violência, como acidentes de carro, homicídios com arma de fogo, acidentes de trabalho e até quedas acidentais, como o vovô tropeçando na calçada. Ou seja, esse lado também não é nada atrativo e como as opções terminaram, não existe mesmo maneira fácil de morrer. Bom, também não tem jeito fácil de nascer, então a trajetória da raça humana está super coerente consigo mesma.
Nas causas naturais, o corpo é considerado da família, então ela pode escolher sobre a autópsia ou não. Mas há a necessidade de uma declaração de óbito preenchida por um médico que estivesse acompanhando o paciente, ou que seja um médico conhecido da família. Essa declaração é necessária tanto para mortes ocorridas no hospital quanto em casa. Se o diagnóstico estiver esclarecido, não precisa fazer autópsia. Se a causa não estiver esclarecida, o médico provavelmente não assinará a declaração de óbito e pedirá uma autópsia. Ele pode assinar como causa indeterminada e assim não haver a autópsia, mas isso só ocorre em cidades onde não existe o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), como ocorre na maior parte das cidades do Brasil. Há o IML (Instituto Médico Legal – para causas externas) mas não o SVO, que faz autópsia nas causas naturais.
Nas causas externas, há a necessidade de uma apuração jurídica, com a abertura de um inquérito. Obrigatoriamente, em todo óbito de causa externa, a autópsia é obrigatória, então a família não decide sobre ela. O corpo é considerado do Estado e será encaminhado ao IML. A autópsia é feita pelo legista, que é um perito oficial, concursado e funcionário do Estado.
No SVO, a autópsia é feita pelos médicos contratados do SVO, não há a necessidade de peritos, como no IML. A maioria dos SVOs são uma autarquia, pertencem metade à prefeitura e metade ao setor privado, por isso ele acaba só existindo em cidades grandes que têm mais recursos para mobilizar a estrutura de um SVO, como São Paulo e Campinas.
O preenchimento da declaração de óbito é tema de discussão nos Conselhos de Medicina para evitar erros que possam prejudicar as famílias e as estatísticas baseadas neles. Desde 1976, ele é padronizado em todo território nacional. Na publicação do Ministério da Saúde: “A Declaração de Óbito: documento necessário e importante”, afirma-se na apresentação: “Nós médicos somos educados para valorizar e defender a vida. Sempre nos ensinaram que a morte é a nossa principal inimiga, contra a qual devemos envidar todos os nossos esforços. Esse raciocínio reducionista, porém real; equivocado, porém difundido, é fonte de incontáveis prejuízos para as pessoas. A morte não é a falência da medicina ou dos médicos. Ela é apenas uma parte do ciclo da vida”.
Fonte: entrevista com Dr. Paulo Newton Danzi Salvia, médico legista do IML de Campinas e professor da Unicamp.
Atualização em 20/05, 14h : Dr. Paulo informou que o termo autópsia também pode ser usado como necrópsia. Eles são sinônimos.
Atualização em 21/05: Recebi um email do médico geriatra Dr. André Filipi Junqueira dos Santos com considerações importantes sobre esse post. Achei interessante compartilha-lo. Segue, abaixo.
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Quer saber como é feita uma autópsia? Veja no post “Visita ao Necrotério”.
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