A autópsia é obrigatória?

Camila Appel

É incômodo pensar no corpo de alguém que amamos todo recortado por uma autópsia. Não queremos que nos esfaqueiem nem em vida nem na morte, não importa se digam que o cérebro está desligado depois que morremos e não existe sistema nervoso central sem ele, ou seja, não existe dor. Mas a primeira indagação científica sobre haver consciência após a morte ou não já estremece as bases e aquele bisturi indagador pode ficar quietinho lá na caixinha dele.

Em algumas situações não haverá escolha, porque a autópsia pode ser obrigatória.

Há duas maneiras de morrer. Ou você morre do que é chamado de causa natural, que são doenças como câncer, infarto, derrames, doenças infecciosas como Aids e dengue, enfim, todas essas palavras arrepiantes. Ou você morre de causa externa, que são acidentes e violência, como acidentes de carro, homicídios com arma de fogo, acidentes de trabalho e até quedas acidentais, como o vovô tropeçando na calçada. Ou seja, esse lado também não é nada atrativo e como as opções terminaram, não existe mesmo maneira fácil de morrer. Bom, também não tem jeito fácil de nascer, então a trajetória da raça humana está super coerente consigo mesma.

Nas causas naturais, o corpo é considerado da família, então ela pode escolher sobre a autópsia ou não. Mas há a necessidade de uma declaração de óbito preenchida por um médico que estivesse acompanhando o paciente, ou que seja um médico conhecido da família. Essa declaração é necessária tanto para mortes ocorridas no hospital quanto em casa. Se o diagnóstico estiver esclarecido, não precisa fazer autópsia. Se a causa não estiver esclarecida, o médico provavelmente não assinará a declaração de óbito e pedirá uma autópsia. Ele pode assinar como causa indeterminada e assim não haver a autópsia, mas isso só ocorre em cidades onde não existe o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), como ocorre na maior parte das cidades do Brasil. Há o IML (Instituto Médico Legal – para causas externas) mas não o SVO, que faz autópsia nas causas naturais.

Nas causas externas, há a necessidade de uma apuração jurídica, com a abertura de um inquérito. Obrigatoriamente, em todo óbito de causa externa, a autópsia é obrigatória, então a família não decide sobre ela. O corpo é considerado do Estado e será encaminhado ao IML. A autópsia é feita pelo legista, que é um perito oficial, concursado e funcionário do Estado.

No SVO, a autópsia é feita pelos médicos contratados do SVO, não há a necessidade de peritos, como no IML. A maioria dos SVOs são uma autarquia, pertencem metade à prefeitura e metade ao setor privado, por isso ele acaba só existindo em cidades grandes que têm mais recursos para mobilizar a estrutura de um SVO, como São Paulo e Campinas.

O preenchimento da declaração de óbito é tema de discussão nos Conselhos de Medicina para evitar erros que possam prejudicar as famílias e as estatísticas baseadas neles. Desde 1976, ele é padronizado em todo território nacional. Na publicação do Ministério da Saúde: “A Declaração de Óbito: documento necessário e importante”, afirma-se na apresentação: “Nós médicos somos educados para valorizar e defender a vida. Sempre nos ensinaram que a morte é a nossa principal inimiga, contra a qual devemos envidar todos os nossos esforços. Esse raciocínio reducionista, porém real; equivocado, porém difundido, é fonte de incontáveis prejuízos para as pessoas. A morte não é a falência da medicina ou dos médicos. Ela é apenas uma parte do ciclo da vida”.

Fonte: entrevista com Dr. Paulo Newton Danzi Salvia, médico legista do IML de Campinas e professor da Unicamp.

Atualização em 20/05, 14h : Dr. Paulo informou que o termo autópsia também pode ser usado como necrópsia. Eles são sinônimos.

Atualização em 21/05: Recebi um email do médico geriatra Dr. André Filipi Junqueira dos Santos com considerações importantes sobre esse post. Achei interessante compartilha-lo. Segue, abaixo.

   ” Olá Camila, Tudo bem? Gostaria de acrescentar algumas considerações ao post “A autópsia é obrigatória?”. Uma curiosidade semântica: alguns autores consideram usar a palavra autópsia quando a pessoa fala sobre o procedimento em si mesmo (fizeram um autópsia em meu fígado, por exemplo. Nesse caso,  a palavra autópsia é usada no sentido de biópsia).  Necrópsia seria utilizada quando o procedimento é feito por uma pessoa em outra pessoa (fizeram uma necrópsia no fígado dele, por exemplo). Mas na prática pode-se usar os dois termos. Outro ponto que gostaria de acrescentar é que a Declaração de Óbito deve ser preenchida por um médico assistente, ou seja, alguém que estava dando assistência à pessoa que faleceu e conhece seu caso. Porém, esta figura médica tem desaparecido com o crescimento de serviços de saúde, tanto no âmbito público quanto no particular. Hoje, muitas pessoas não falam que são acompanhadas por um médico específico, mas sim por uma área de um hospital, como o Serviço de Oncologia do Hospital Sírio Libanês, por exemplo. Geralmente, estas pessoas são atendidas por médicos residentes ou médico contratados, em um sistema de rotação. E pode acontecer da pessoa falecer em casa ou em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sem estar no serviço de referência. É aí que a complicação começa para o preenchimento da declaração do óbito, pois muitas vezes os familiares não tem contato com o médico do serviço de referência (especialmente se for durante a semana a noite ou no final de semana) e os médicos que constatam o óbito (seja do SAMU ou da UPA) se recusam a preencher o documento alegando que não estavam acompanhando o caso daquela pessoa. Então, surge o pior desfecho possível: o corpo da pessoa é encaminhado ao SVO para uma necrópsia e confirmar o fato óbvio (por exemplo: morte por câncer em fase avançada). Já vi estas situações muitas vezes – de famílias angustiadas pelo fato do ente querido estar morto e passarem pela angústia de um procedimento inútil (uma necrópsia para identificar uma causa já documentada), pois nenhum médico quis assinar o documento. Atualmente, aqui no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, estamos discutindo uma maneira de preencher a declaração de óbito de pacientes que são acompanhados pelo Hospital, mas morrem fora do mesmo, numa situação relacionada à doença, porém sem acompanhamento da equipe. É uma particularidade do sistema, mas muito perversa.
Abraços, André”.

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Quer saber como é feita uma autópsia? Veja no post “Visita ao Necrotério”.

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