A morte segundo o espiritismo
O que dizem as religiões sobre a morte? O blog inaugura uma série de artigos com entrevistas com referências dos diversos dogmas. Chamados de doutrina, filosofia, ciência ou religião, são ideias que guiam nossa concepção do que é a morte e o que vem depois dela. Mesmo quando as rejeitamos. A iniciativa parte de uma opinião minha, de estarmos cada vez mais inclinados a misturar conceitos de filosofias diferentes para formar uma crença individual e reconfortante sobre a morte. Seria um sincretismo pessoal.
Segue uma conversa com Heloísa Pires sobre o Espiritismo. Heloísa é filha de Herculano Pires (1914-1979), um forte divulgador da doutrina espírita no Brasil e tradutor de Allan Kardec. Licenciada em matemática, física e pedagogia, fortaleceu-se como oradora ministrando palestras sobre o Espiritismo. É autora de livros como “Educação Espírita” (ed. Paideia) e “Herculano Pires: O homem no mundo” (ed. Candeia).
A morte para o espiritismo não é o fim, mas sim o começo de uma outra etapa evolutiva. A vida no corpo físico é vista como um aprendizado para o espírito. Quando morremos, acredita-se que vamos para um plano espiritual, levando o aprendizado dessa vida adiante. Também se crê na reencarnação e na individualidade da alma – cada alma é única e mantem suas características no plano espiritual. Assim, a existência na Terra (e em outros planetas) é o caminho dos espíritos em direção a uma alma mais evoluída, que seria a prática da bondade e da tolerância. A caridade também é muito estimulada.
Criado na França no século XIX por Allan Kardec (o pseudônimo do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail), a doutrina se adaptou bem à vida dos brasileiros – temos a maior comunidade espírita do mundo.
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Como o espiritismo vê a morte?
Não existe morte. A morte é uma ilusão, ela é apenas uma viagem. Cada um vai para a atmosfera que lhe é própria. Por exemplo, um terrorista do ISIS vai estar , do lado de lá, no meio de terroristas. E vai estar em dificuldades, como ele já está aqui. Você é o que você pensa. Se você pensa bem, você vai se ligar aos que pensam bem. Não é castigo, é uma consequência do seu pensamento.
Continuamos pensando sem o cérebro?
Sim, porque não é o cérebro que pensa. Se o espírito se afasta, o cérebro morre e para de pensar. O que pensa, o que vive, o que é imortal são os espíritos. Já diziam os druidas, os monges tibetanos, os budistas, Confúcio… é um conceito que vem de séculos. Nossa civilização rejeitou a ideia de que a vida continua, de que reencarnamos, por arrogância, por vaidade.
Quando começou essa rejeição?
A rejeição começou com os primitivos cristãos, quando a mulher de Constantino não quis nascer escrava. Pela lei, quem maltrata escravos encontraria dificuldades e talvez até reencarnaria como um escravo. E ela rejeitou essa ideia. O marido, para agradá-la – porque ele era menos cristão do que político – fez um concílio acabando com a ideia da reencarnação. Mas a ideia vem de longe e continua. Os egípcios acreditavam, os esquimós… Na Índia, todos acreditam em reencarnação até hoje. Muitos políticos rejeitam a ideia de encontrar as consequências de seus atos após a morte.
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Existiria um julgamento após a morte?
É o ser que se julga. Deus colocou a lei do amor dentro de cada um, criatura criada. Deus não é um homem, é uma força, é uma luz. A pessoa é que se julga. Tanto que, quando a pessoa não se conscientiza, nasce bem e só vai se julgar quando amadurecer.
Deus é o pai da parábola do filho pródigo, ele perdoa. Como o ser é que se julga, um dos maiores problemas do ser são os complexos de culpa inconscientes.
Há um tabu em relação à morte na nossa sociedade?
Existe um medo. A filosofia existencialista, materialista e espiritualista diz que o homem entra em depressão por medo da vida e da morte. E da doença, que é uma agonia. Porque nós sabemos que o corpo é frágil. Um prego enferrujado pode causar nossa morte. Quando você sabe que você não é esse corpo físico, tem outra visão. Por exemplo, eu olho e vejo que o meu está ficando velhinho. Mas eu estou fazendo outro corpo. Na outra encarnação serei novamente jovem.
No espiritismo há um tempo especifico para se reencarnar?
Falam muita bobagem. Mas analisando a literatura espírita, a gente vê que cada individuo é um universo. Por exemplo, no livro “Sexo e Destino” (psicografado por Chico Xavier), a menina morre e reencarna em menos de um ano depois.
Como é que a você sabe que existe reencarnação?
Através das dissidências muito bem feitas pelo doutor Ian Stenveson (1918-2007) e pelo doutor Hemendra Nath Banerjee (1929 – 1985), por exemplo. No tempo e no espaço, a reencarnação é provada. Entre os esquimós e algumas comunidades na África, acredita-se tanto em reencarnação que quando a criança nasce, eles colocam os objetos de quem já morreu ao lado dela e saberão quem ela é de acordo com aquilo que a criança escolheu. O doutor Ian Stenveson não era espírita, ele foi um médico psiquiatra dedicado ao estudo científico da reencarnação e publicou, por exemplo: “20 Casos Sugestivos de Reencarnação” (1966).
Qual é a relação entre espiritismo e ciência?
Espiritismo é ciência, filosofia e religião. É ciência porque tem um método de estudo, um método experimental. Tem cientistas como William Crookes (1832-1919) que provaram a existência dos fatos espíritas. É filosofia porque da comprovação do fenômeno houve uma mudança de comportamento – naqueles que realmente acreditaram. E é religião porque estabelece o religare, projeta o indivíduo no universo. E porque o processo do conhecimento é ciência, filosofia e religião. Então, ele é a síntese do processo do conhecimento, ele é o triângulo.
Espiritismo tem alguma relação com a física quântica?
Hoje sim, hoje a física quântica está linda. Quando a física quântica diz que nós nos projetamos em várias dimensões, Allan Kardec já havia dito: estamos onde está nosso pensamento. Não estamos fechados nesse corpo, nosso pensamento atinge distâncias inimagináveis.
Essa relação dos espíritos estarem em outros planos se conecta com os mundos paralelos da física quântica?
Pode se conectar, porque é claro que existem dimensões por nós desconhecidas. E não precisa morrer para estar lá. Nesse momento, nós estamos nos projetando aqui e nas dimensões que nos são próprias. Alguns se projetam na luz, outros se projetam na sombra. Veja o exemplo da doutora Mary Neal, do livro “Fui ao Céu e Voltei” (Leya, 2013). Ela teve um acidente com um caiaque durante uma aventura no Chile e entrou em estado de quase morte. Ela se vê num mundo dos seres de luzes e encontra a avó, a babá, a tia… Ela usa a mesma linguagem que outros usaram em relatos semelhantes, mesmo sem conhecê-los. Ela diz que viu seu corpo lá embaixo, azulado, todo quebrado. Ela se lembra de não querer retornar para aquele corpo machucado. Ela é protestante e continua protestante, mas divulga a existência dos seres de luz e diz que a morte não é como os protestantes pensaram.
E quando sonhamos?
Sonhando, a gente sai do corpo. Podemos ir a outras dimensões, tanto as boas quanto as ruins. Nós somos o que pensamos e estamos onde criamos. O céu e o inferno são criações nossas. O céu é um estado de conforto físico. O inferno não existe, o que existe é um nível inferior. Mas aí a pessoa já está aqui em um nível inferior. Existe o negativo e o positivo. E o positivo pode anular o negativo, o bem anula o mal. Em um dos livros de André Luiz (espírito psicografado por Chico Xavier), um dos meninos que vai reencarnar matou seu futuro pai em uma reencarnação anterior. Pela lei olho por olho, dente por dente, deveria morrer assassinado, mas não existe isso. Existe a lei de ação e reação, mas não essa de olho por olho e dente por dente.
O que precisa para uma pessoa poder ser chamada de espírita?
Necessariamente não precisa ser espírita, precisa ser uma pessoa boa. Meu pai (Herculano Pires) escreveu um pequeno grande livro chamado “O Reino”, onde ele diz que o critério não é ter aquela religião ou ter esse ou aquele extrato bancário. O critério é ser bom, amar o próximo e fazer o bem. Agora, nós precisamos do espiritismo como uma força maior, uma visão que dilata. Sartre e os materialistas têm catarata espiritual, veem no funil. O espiritismo, ou o budismo, dão uma dilatação de visão. O seu corpo não fica na terra nem acaba em cinzas. Você é uma luz que sai e vai.
Há algum direcionamento sobre rituais fúnebres?
Não, apenas uma prece. Você pode escolher ser enterrado ou cremado. Não há tempo de espera. Mesmo que o espírito seja muito ligado ao corpo, quando entrar no crematório, ele vai fugir.
O que você acha da psicanálise?
Respeitamos profundamente todos os grandes pesquisadores. Freud foi de uma coragem incrível. A coragem do Freud foi de contar que as crianças tinham impulsos sexuais e que os homens também tinham histeria.
O que você não concorda com Freud?
Eu não concordo que ele só via o lado patológico do sexo. Jung via o lado iluminado do ser humano. Mas Freud tinha muitos problemas internos.
O suicídio é um pecado ou um direito?
É um momento de loucura. O suicida sofre porque ele sente as energias que não se desprenderam ainda do corpo físico. Ele não tem um castigo, mas sofre porque ainda não se desprendeu. Logo que ele permite, ele é levado para o hospital do plano espiritual.
Você já disse que a nossa sociedade é uma sociedade doente. O que quer dizer isso?
É uma sociedade violentíssima, é uma sociedade materialista, considera as pessoas apenas pelo que têm e não pelo que são. Na verdade, é um desrespeito ao pobre, ao necessitado, ao doente. Claro que tem muita gente boa no mundo, mas os maus fazem barulho, os maus parece que dominam. Eu tenho uma teoria de que não é que eles dominam, é que os bons se encolhem por complexo de culpa – talvez tenham sido maus na outra vida e agora têm tanto medo de errar que não fazem o bem, não lutam contra a maldade. Os políticos por exemplo, só pensam em administrar o próprio bolso, e ninguém fala nada. Mas a chave para o universo é o amor.
Você acha que essa “doença” está melhorando ou piorando?
A evolução é uma espiral, tem uma subida e uma descida. Estamos na descida para preparar a subida. Essa corrupção que traz mal-estar tinha que estourar.
Nas palestras que você ministra, há algum tema recorrente trazido pelo público?
Gostam muito de perguntar sobre família. Filhos que odeiam os pais, pais que odeiam os filhos, cônjuges que não se suportam e não se largam. São os temas mais presentes. E no momento atual, a falta de emprego, perda de emprego, dificuldades profissionais. Eu aconselho sempre os especialistas da horizontal: psicólogos e psiquiatras, porque o espiritismo não dispensa tratamento médico. Ou seja, vai tomar um passe, mas vai também no psicólogo, vai no neurologista, marca uma consulta com o médico.
Os espíritos usam tecnologia?
Muito. Antes do computador aparecer na terra, André Luiz o descrevia no mundo espiritual. A tecnologia do mundo espiritual é mais adiantada do que a nossa.
O que é uma boa morte para você?
No livro “Obreiros da vida eterna”, André Luiz conta 5 casos de morte. Quem morre melhor é uma senhora protestante. Por que ela morre bem? Antes dela morrer ela tinha uma fé muito grande em Jesus. Mesmo sentada na cadeira de rodas, doente, ela já caminhava pela casa, porque ela não estava grudada no corpo físico. E quando ela desencarna, ela é a mais lúcida, vai acompanhando toda a viagem. O espírita do livro morre bem também, ele vai com tranquilidade, mas vai chorando e sofrendo pela família que ficou. O Católico (do livro) fica grudado no corpo físico. Morrer bem é ir tranquilo, com aceitação, largar o corpo físico como uma roupa velha e partir.
Você tem medo de morrer?
Não, medo não… mas eu não queria morrer já. Quando eu me sinto mal, falo: Jesus… mais 5 anos vai. Tem que ir pedindo à prestação (risos).
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