A morte segundo o judaísmo

Camila Appel

Para o rabino Adrián Gottfried, a morte faz parte da vida. A separação entre morte e vida seria fruto da cultura moderna. “É algo relativamente novo e está vinculado ao processo de passarmos a morrer nos hospitais”, ele diz.

Com licenciatura e mestrado em Sociologia pela Universidade Nacional de Buenos Aires, esse rabino de origem argentina é líder spiritual da Comunidade Shalom há 18 anos. É uma comunidade paulista que também se destaca por uma participação feminina relevante, ao aceitar mulheres como rabinas.

Na entrevista abaixo, ele comenta a abertura da tradição judaica a interpretações, “não há uma única voz oficial. Se você falar com 35 rabinos, terá 35 versões diferentes”. Mas haveria pontos de consensos, como a crença de que a morte não é o fim da vida. Como essa continuidade ocorre seria passível de interpretações. “Para uns, a continuidade significa continuarmos através dos filhos, da família. Não apenas família biológica, pode ser também um professor, um mestre. Na medida em que você mantém a pessoa acesa, ela continua te inspirando e é eterna”.

Adrián também fala sobre os costumes judaicos para o luto e seus ciclos. O hábito de rasgar um pedaço da roupa na morte de um familiar direto, por exemplo, “simboliza o início da consciência do processo de luto. Nunca estamos preparados para esse momento, não importa há quanto tempo a pessoa estava doente. Por isso, a roupa rasgada ajuda no início dessa conscientização. Depois de um tempo, costuramos a parte rasgada, para simbolizar que a cicatriz permanece eternamente e você vai aprender a conviver com esse vazio no coração”.

Como o judaísmo vê a morte?

 A primeira questão importante para o judaísmo é que a morte é uma parte da vida. Não é algo separado da vida, é a outra cara da mesma moeda. Na tradição bíblica, a morte não é chamada de morte mas sim de “voltar para casa”. É uma espécie de reunião. Não sabemos como vai ser esse reencontro porque ninguém voltou de lá para contar. A palavra morte nem aparece na bíblia. Quando eu falo de bíblia, só para ser mais preciso, estou falando dos cinco primeiros livros da bíblia, a Torá, que para a tradição judaica, são os textos mais importantes.

A cultura moderna traz uma separação importante da morte. Isso é algo relativamente novo e está vinculado ao processo de passarmos a morrer nos hospitais. Antigamente, as pessoas nasciam e morriam em casa. Por tanto, eram eventos considerados naturais. Hoje, quando alguém nasce, vai para o hospital e quando alguém morre, vai para a UTI, fica entubado e recebe visitas que duram apenas meia hora e olhe lá. Poucos sistemas permitem que a família fique próxima da pessoa. Existe o movimento de hospices que tenta dar um pouco de cuidados paliativos para os casos em que a medicina já não tem muito o que fazer. Mas a maioria das pessoas, ainda que entenda que a medicina não possa atuar mais, acha que o médico vai cuidar melhor do parente do que a própria família. A tecnologia pode ser boa para algumas coisas e ruim para outras. Há a fantasia de que estar conectado a um monte de tubos é melhor.

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A morte vai chegar para todo mundo, ela é democrática. Trabalhando como rabino há tantos anos, eu percebo que as mortes são muito diferentes. E para cada pessoa impacta de uma forma diferente. Os lutos são diferentes. Podem haver mortes mais simples de aceitar. A tradição judaica tenta, de alguma maneira, ajudar as famílias enlutadas a lidar com esse momento e tomar consciência dessa realidade. Talvez uma das coisas mais importantes dessa tradição seja ajudar as famílias a passar pela experiência da morte sabendo que todos passaremos por ela, mas cada passagem é individual.

 Como o judaísmo vê o luto?

 Trabalhamos com dois princípios: a santidade da pessoa falecida, que são os rituais vinculados ao corpo, e o consolar a família. Sobre a pessoa falecida, há o ritual de lavar o corpo antes de enterrar, chamado tahará. Optamos por nunca expor o corpo em velórios para preservar a imagem da pessoa em vida, e é uma forma de dizer que ela não está mais lá. Há simplicidade, o caixão não tem adornos e a roupa do morto é uma mortalha branca, igual para todos.

O judaísmo diz que a morte tem quatro períodos de luto. O primeiro vai do momento da notícia até o enterro. Trabalhamos para ajudar a família a cuidar do enterro e a realizá-lo o mais rápido possível. O enterro no judaísmo tem que ser orgânico. Somos contra, por exemplo, a cremação. É uma questão muito dura para o judaísmo porque, primeiro, é antinatural. Se alguém te empresta um livro, você vai querer devolvê-lo inteiro e não queimado. O corpo é um empréstimo que fazemos. A segunda questão é que, depois das câmaras de gases em Auschwitz, o corpo queimado ganhou outra dimensão. Sem contar o impacto psicológico e espiritual nas famílias que não terão um espaço para poder lembrar do falecido.

Após o sepultamento, há o luto dos primeiros sete dias. Nesse período, os familiares diretos rasgam um pedaço de suas roupas. Para pai e mãe falecidos, rasgamos do lado esquerdo, que é o lado do coração. Para os outros familiares diretos como esposa, irmãos e filhos, rasgamos do lado direito. Simboliza o início da consciência do processo de luto. Nunca estamos preparados para esse momento, não importa há quanto tempo a pessoa estava doente. Por isso, a roupa rasgada ajuda no início dessa conscientização. Depois de um tempo, costuramos a parte rasgada para simbolizar que a cicatriz permanece eternamente e você vai aprender a conviver com esse vazio no coração.

Nesses sete dias, o enlutado sai da sua rotina para se dedicar às rezas. A reza é um pretexto para as famílias se reunirem para resgatar as memórias sobre o morto. A memória ajuda a ver que, fisicamente, a pessoa não está mais lá mas algumas coisas continuam. Muitas vezes, os familiares estão ligados à última fase da vida do morto, enquanto ele estava doente, e se esquecem do “filme” inteiro. Parte da função dos rabinos é ajudar a resgatar essa memória – que está lá mas é pouco acessada. Incentivamos as famílias a dar depoimentos, a contar casos. É um momento para celebrar a vida da pessoa que morreu. A tradição judaica dá uma ferramenta para ajudar, mas depende da pessoa querer. Nem todo mundo aproveita essa oportunidade e depois, quando percebe, já é tarde. Porque não adianta querer fazer as rezas, e passar por esse processo, depois de dois anos.

Essas rezas precisam de um quórum mínimo de dez pessoas. Isso tem a ver com a ideia de que, se eu estou enlutado e fico sozinho, eu retroalimento minha dor e minha angústia. Quando há dez pessoas presentes, poderá haver um que está celebrando que o filho entrou na faculdade, por exemplo. Isso, automaticamente, me ajuda a entender que, ainda que eu esteja em um momento triste, possa me alegrar, por empatia, por outra pessoa. E vice-versa. É um momento de contradança psicológica, sabendo que a vida vai ter os dois. Hoje estou desse lado, mas amanhã poderei estar celebrando alguma coisa. Isso tem a força do quórum mínimo.

Quais são as outras etapas do luto?

 Depois da etapa do sepultamento e dos primeiros sete dias, há os 30 dias. Ainda é uma fase de recuperação. As rezas ocorrem na sinagoga e não mais em casa. O luto funciona de forma irregular, haverá dias em que a pessoa vai querer ir rezar e outros que não. Depois desses 30 dias, você tem que voltar à vida, à rotina normal. Não pode ficar remoendo o luto. O último ciclo é o ano, que fecha o ciclo de luto. O judaísmo diz que depois de um ano você está proibido de dar pêsames. Por quê? Porque já foi. Se não, as pessoas utilizam o luto para outras coisas que não tem nada a ver com o luto. Todo ano, no aniversário do falecimento, você faz uma reza, uma contribuição filantrópica em homenagem à pessoa, e retoma as memórias do morto. A tradição judaica te obriga a manter essa memória acesa. Porque no dia a dia ninguém acorda pensando em tudo isso.

O judaísmo defende a imortalidade da alma?

Na Igreja Católica, as crenças ocorrem de forma vertical. Há um papa que diz como as coisas são e não há alternativas. Na judaica, elas são horizontais. Há várias possibilidades. Não há uma única voz oficial. Se você falar com 35 rabinos, terá 35 versões diferentes. É bem mais caótico e menos regrado. O judeu acredita que a vida tem continuidade. Agora, como essa continuidade se dá é onde entram as interpretações. Para uns, a continuidade significa continuarmos através dos filhos, da família. Não apenas família biológica, mas pode ser também um professor, um mestre. O ponto de consenso é que a morte não é o fim da vida. Na medida em que você mantém a pessoa acesa, ela continua te inspirando e é eterna.

A ideia de haver uma terra dos mortos e de que um dia eles poderão ser ressuscitados é figurativa?

 Nessa questão já não temos tanta unanimidade. Discute-se se isso é uma metáfora ou se é literal. Se é poesia ou prosa. Eu acho que é poesia. Na bíblia, há uma visão do vale dos ossos, do profeta Ezequiel, que começam a ter o processo inverso de virar ossos, ganhando tendões, carne, pele, até ressuscitarem. Para mim, é metáfora. Eu não acredito que as pessoas vão ressuscitar, ainda que alguns colegas meus, rabinos, acreditem que sim. E falam que o processo vai começar pelo Monte das Oliveiras em Jerusalém. Por isso, é o cemitério mais caro da galáxia.

Como você descreveria Deus para uma criança?

O problema da pergunta é que a tradição judaica tem diferentes maneiras de enxergar como é Deus. É difícil você encontrar uma única maneira. Mas é claro que você tem que falar de Deus com as crianças desde cedo. Falar sobre a morte também e incluí-las nos rituais. Essa coisa de criança não poder ir ao cemitério é uma bobagem. Elas lidam com a morte o tempo todo, do Rei Leão até o Bambi, sem falar dos filmes mais sofisticados. Qual é o sentido da criança ver os pais chorando e não saber por que? Isso alimenta fantasias que depõem contra a criança, porque ela vai criar as piores fantasias e poderá achar que o problema é com ela, que ela fez alguma coisa errada. Tem pessoas que falam que o avô virou uma estrelinha. Que estrelinha?

É preciso ajudar a criança no momento de tristeza e incluí-la nos rituais com toda a família. Também é uma maneira de mostrar para a família a ordem reversa. No momento que você perde o ente querido, você vê no seu filho ou filha, o futuro. Portanto, ele é importante para dar forças. A criança é a garantia de continuidade.

Antes de falar com uma criança sobre Deus, você tem que falar com você sobre Deus. Para saber se você acredita em Deus. Não adianta falar algo para seu filho que você não acredita. O problema é ser hipócrita em falar coisas que você não acredita só por causa do “tem que”. E não tem problema falar uma coisa hoje e amanhã falar outra, desde que você esteja coerente com consigo mesmo. Não adianta falar para a criança ir perguntar ao rabino sobre Deus e morte. Ela quer que a mãe ou o pai respondam e não que uma autoridade externa. Não se pode transferir a responsabilidade.

Como é feita a preparação do corpo, o ritual da limpeza, para o enterro?

É feita por um grupo de voluntários da Chevra Kadisha (Associação de Cemitérios Israelitas). Esse talvez seja o trabalho voluntário mais importante que alguém possa fazer. É muito altruísta, demonstra carinho e amor nessa despedida. Ser lavado significa ficar puro e preparado para uma viagem.

Em cemitérios tradicionais, há a exumação de corpos. No judaísmo o corpo nunca mais pode ser tocado?

O corpo não é desenterrado no judaísmo. Mas a lei judaica tem um princípio maior que diz: a lei local é mais importante do que a lei judaica. Por tanto, em algumas circunstâncias, quando a lei manda (em casos de morte duvidosa, por exemplo), pode-se desenterrar o corpo.

O consolo em casos de morte prematura, de jovens, é diferente?

 Não. Essa história de que o jovem foi chamado por Deus, que Deus levou, é uma besteira. Quem vai acreditar num Deus que rouba os filhos? Quando as pessoas estão desestruturadas, apelam para explicações que não fazem sentido. O problema é acharmos que nosso prazo de validade é de 120 anos. Na verdade, não temos prazo de validade e não temos hora certa para morrer. Isso também não está vinculado a ser uma pessoa boa ou ruim. Há nazistas que morreram com cem anos.

O aborto é legalizado em Israel. Como você orienta as pessoas que solicitam sua opinião a respeito?

Na tradição judaica, o aborto é permitido dentro de certas circunstâncias. Não é um método anticoncepcional. Como rabino, eu posso orientar mas a decisão final é da mulher. O feto é uma parte da mulher. Desde o momento em que está dentro da mãe e apresenta riscos, não apenas físicos mas também espirituais e psicológicos, pode ser evitado. Uma jovem de 15 anos sem capacidade de ser mãe apresenta risco tão grave quanto um problema de coração. A lei judaica estabelece que em casos de natimorto o luto só começa após 30 dias da morte para evitar que os pais fiquem ligados ao natimorto e não queiram mais filhos. Porém, nos últimos anos, foram criadas rezas específicas para o aborto, tanto o espontâneo quanto o provocado.

O que o judaísmo diz sobre a comunicação com mortos e a reencarnação das almas?

Comunicação com mortos e reencarnação das almas não é algo que tem muitos adeptos dentro da tradição judaica. A comunicação que existe no judaísmo tem a ver com as coisas que as pessoas deixaram, seu legado e a forma como continuam inspirando os vivos.

A consciência é considerada algo a parte do cérebro?

Não há separação entre corpo e alma. É uma unidade.

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Rabino Adrián Gottfried

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