Depoimento: professor da USP, portador de ELA, fala sobre ortotanásia: um direito de personalidade
Tenho a honra de compartilhar o depoimento de Milton de Abreu Campanário, professor de economia da USP, portador de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). Ele escreve sobre ortotanásia e o direito sobre o corpo. Um assunto delicado, tratado de forma esclarecedora. Leitura fundamental.
ORTOTANÁSIA: direito de personalidade
“Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal” (Sêneca).
Com 68 anos, a vida pode levar menos tempo do que desejo. Confio na medicina para ter boa qualidade de vida por alguns anos. Sou portador de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica – o caso mais conhecido é do físico Stephen Hawking, que carrega esta síndrome por mais de 50 anos, todo entubado). ELA tem origem numa mutação neurológica degenerativa, progressiva e sem cura. Afeta brutalmente os neurônios motores. Paralisa o corpo, mas não afeta o funcionamento cerebral. No Brasil, sem ferir a legislação, que proíbe a eutanásia, a área médica permite, no caso de doenças incuráveis, a elaboração de um Testamento Vital ou “diretivas antecipadas de vontade” que dispõe acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que o indivíduo deseja ou não ser submetido quando a morte se aproxima. Esta atitude é conhecida como Ortotanásia. Ela impede procedimentos médicos que possam ser considerados invasivos ou artificiais, no sentido de prolongar a vida inutilmente e com sofrimento físico ou psíquico.
Lutar pela vida é um ato instintivo e de dignidade ética. Entrei no experimento ELA-Brasil/USP, apostando nas células tronco como terapia e não cura. Mas, enfrentar a morte encurtando a vida para evitar o sofrimento não é permitido, pois tangencia a eutanásia. Em nosso país podemos encontrar a motivação para valores muito conservadores, de esquerda à direita. A primeira submete a vontade do indivíduo ao interesse social. A segunda coloca a vida como resultado de um interesse metafísico. Estas ideologias combatem a visão que o corpo de uma pessoa pertence a ele ou ela, direcionando o tratamento para do paciente e não para a doença, mas dentro de um protocolo médico. Existe, em vários países, o caminho para um comportamento onde o conforto ao paciente e seus direitos são aceitos pelos cidadãos e garantidos pela legislação: Inglaterra, Holanda, EUA, Canada, Alemanha e nossos vizinhos Uruguai e Colômbia. A falta de uma visão mais ampla, que propicie maior conforto na evolução das doenças incuráveis, contribui para o Brasil estar na penúltima posição no ranking “Quality of Death” criado pela revista The Economist. Estamos somente à frente da Índia. Numa escala de zero a oito ficamos um pouco acima de dois.
No Brasil, não existe legislação específica sobre o tema, mas sim códigos de ética médica e jurisprudência. O Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/2009) diz: “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente” (artigo 41). Pretendo preservar a minha liberdade e dignidade humanas quando ocorrer de não poder mais ser tratado com terapias não invasivas.
Discutir esta postura ética e a sua eventual ampliação é reconhecer os Direitos de Personalidade. O corpo é meu, a vida é minha e não há ninguém para confrontar a personalidade da pessoa que represento. O médico deve tratar o doente, não a doença. O influente Professor de Direito da USP e Procurador Dr. Rubens Limongi França, já falecido, propõe uma interessante classificação do direito. Diz ele que há três pilares por onde passam as relações jurídicas: i) a própria pessoa – direito de personalidade; ii) a pessoa ampliada na família –direito de família; iii) o mundo exterior – direito de patrimônio e outros. Por muito tempo, o Direito de Personalidade foi tratado sob a luz do Direito Público, que supostamente defende o individuo das arbitrariedades do estado e do mundo exterior, tal qual aparece em declarações constitucionais. A tutela pública é ineficiente e insuficiente. Exemplos não faltam. Um exemplo é o conhecido FGTS, um fundo de poupança compulsório que não protege o trabalhador, pois sua remuneração corre atrás da inflação. Há pouco desenvolvimento jurídico sobre os aspectos privados do Direito de Personalidade, mas há uma tipologia proposta pelo autor que abre um leque sobre a integridade das pessoas: física – direito à vida e ao corpo vivo ou morto; intelectual – liberdade de pensamento e invenção; e moral – liberdade civil, política e religiosa. Nos casos de doença terminal, o Estado nem precisa intervir. Basta a vontade da pessoa se confrontar com os códigos médicos. Assim deveria ser na democracia. A sanção é privada e não tutela do Estado.
O Estado é o modo de cooperar das pessoas na democracia. É constrangedor falar somente de doenças terminais, que representam um infinitésimo da integridade física e moral das pessoas. As grandes causas são a integridade física e moral das mulheres e minorias (onde os doentes idosos se enquadram). Aqui não avançamos no mundo inteiro, particularmente no Brasil. Qual a origem dos repugnantes muros que construímos entre classes sociais no Brasil? O Estado, ao se infiltrar de forma populista na vida das pessoas, criminaliza o aborto e as drogas e faz uma opção de colocar mais repressão nas ruas. Tolerância Zero é o nome desta teoria, que tem resultados vergonhosos no país e mundo afora. Ademais, não há nenhuma relação entre crescimento da renda e baixa da criminalidade. Portanto, não há que esperar o PIB crescer. Steven Levitt foi o primeiro economista de peso a tratar esta questão empiricamente, seguindo Gary Becker (Prêmio Nobel) em seu teorema Rotten Kids (Crianças Descamisadas), que estabelece o altruísmo familiar como elemento básico do equilíbrio social. No Brasil, o colega Gabriel Hartung mostra a relação de segunda ordem entre demografia e criminalidade. Ao tutelar o corpo das mulheres, proibindo o aborto, sem dar prioridade à educação primária, o país está produzindo uma juventude que vive sem altruísmo, presa no submundo das drogas, da prostituição de menores e das “comunidades” que acolhem os menores para servir o crime organizado, sem direito a ter personalidade. Morre antes disso.
Milton de Abreu Campanario
BA USP – MS Harvard – PhD Cornell / Pos-Doc Oxford e Tokyo / Pesquisador e Ex-Presidente do IPT / Professor Economia FEA/USP. milton.campanario@gmail.com