Rir é resistência: o evitável adeus de Paulo Gustavo e de 3 mil pessoas

por Camila Appel e Jéssica Moreira

Às 21h12 da terça-feira (4), o Brasil recebeu com dor a notícia da morte do humorista Paulo Gustavo. Além de Paulo, só ontem, outras 3.025 pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus.

Ao todo, são mais de 412 mil vidas interrompidas por uma doença para a qual não há tratamento precoce com comprovação científica, mas já há vacina. Por falta de vontade política, o imunizante não chegou a tempo de minimizar os efeitos do vírus no corpo de todos aqueles que partiram. Aglomerações, sem a proteção básica de uma máscara, foram incentivadas. A “gripezinha”, ironizada. 

A morte de Paulo, esse rosto que bateu recordes de bilheteria e fez milhões irem ao cinema para rir, unifica, mas não diminui, as dores distribuídas por todo país. Cada um de nós conhece alguém que morreu ou que está, neste momento, internado entre a vida e a morte. 

O luto nacional que estamos vivendo há mais de um ano encontra-se com os lutos individuais. Os anônimos, as dores próximas ou longínquas de quem convive com o inexplicável do ‘nunca mais te ver’. O desaparecimento repentino da pessoa amada não cabe na palavra que passa a representá-lo: saudades.

Os familiares, amigos e fãs de Paulo estabeleceram uma corrente de fé e esperança pelas redes sociais no último mês. Dialogou com todos que estavam vivenciando processos semelhantes, em vigília pela cura de seu ente querido.

É nosso dever registrar esse momento para além dos números e dos gráficos. Trazer a alegria dos tantos Paulos que partiram sem fazer a última piada. 

Paulo era jovem, tinha apenas 42 anos. Segundo a humorista e amiga pessoal Tata Werneck, não apresentava comorbidades. A última crise de asma do artista foi há 10 anos, reafirmando a surpresa de uma morte fora do grupo de risco. As mortes na faixa dos 40 e 49 anos cresceu nas estatísticas: 626% em janeiro e 419,23% em fevereiro, o maior aumento entre todas as faixas etárias.

Estamos em choque. Não pelo inesperado. Mas a constatação de chegarmos num ponto de tristeza e descaso profundos.

A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da pandemia começou a receber depoimentos no dia da morte de uma referência nacional. Uma vítima que trazia para si as qualidades de quem “não está na hora de morrer”.

Ele fazia o bem, distribuindo alegrias e sorrisos. Ele era casado com o dermatologista Thales Bretas. Tinham dois filhos bebês, Romeo e Gael, fruto de uma longa tentativa de reprodução assistida. Quebraram mais um tabu, falando abertamente sobre isso, ajudando outras pessoas a se abrirem. 

Paulo Gustavo é uma referência nacional, trouxe avanços para nossa cultura e fortaleceu a comunidade LGTBQI+, na pele de Dona Hermínia, inspirada em sua mãe, e em várias outras personagens. Era considerado um gênio. Representava o Brasil no que temos de melhor. E foi morto pelo nosso pior.

Lemos que a morte é inconveniente, chega sem pedir licença. Ela não espera um projeto ser concluído, palavras de amor serem finalmente declaradas. Mas as mortes por conta da Covid-19 poderiam, sim, ser prevenidas por ações estratégicas melhor elaboradas.

Nossos governantes ignoraram a pandemia durante muito tempo. Dão o exemplo da crueldade e da displicência. São o oposto de Paulo Gustavo. Rejeitaram diversas ofertas de vacinas. Entre elas, a de 70 milhões de doses que chegariam até dezembro do ano passado, da Pfizer: a melhor vacina que existe no mundo contra o novo coronavírus.


“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas anti direitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida, diante da 31ª edição do relatório mundial da organização.

A Covid-19 encontra outras, tantas, desigualdades em solo brasileiro: a insegurança alimentar, a falta de saneamento básico e a necessidade de continuar saindo para trabalhar, como mostramos em texto deste blog quando o Brasil bateu a marca de 300 mil mortos em meio a um rastro de fome. Por trás disso, a necropolítica: uma política de morte, que define quem vive e quem morre.

Um levantamento da CNN com base em boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde mostra que a chance de uma pessoa negra morrer pelo novo coronavírus é 38% maior que a de um branco. Pardos e pretos também representam 57% dos mortos pela doença. A Agência Pública também mostrou que o Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. 

Aqui, damos o nosso adeus e nos juntamos ao abraço coletivo de todos aqueles que, assim como a família de Paulo Gustavo, estão sofrendo em decorrência da partida de uma pessoa que amam. 

O ofício de Paulo Gustavo era usar sua genialidade para o humor. Se “rir é um ato de resistência”, vamos resistir realçando ainda mais nosso ofício também. Escrever, criar, denunciar. A morte em si não é evitável, mas a morte por esse vírus já é. A prioridade é, deveria ser, desde o início, vacinar a população.

No fim, a morte sempre nos arrebata. Uma ou mil. Uma ou quase duas mil. Uma ou mais de 3 mil. Por minuto, por hora ou por anos. Ela não deixa ignorar o medo e a indignação. 

A mensagem na virada de ano, na Globo, do ator Paulo Gustavo traz a importância das artes para nossas vidas. A arte dramática, o cinema, o teatro, artes plásticas, a dança, a cultura em geral. Ele se declara orgulhoso em ser artista. Uma classe que tanto tem sofrido nesse ano pandêmico.

Ele se despede:

“Contra o preconceito, a intolerância, a mentira e a tristeza já existe vacina. É o afeto, é o amor. Então, diga o quanto você ama a quem você ama e a quem você ama. Mas, não fique só na declaração, ame na prática, na ação. Amar é ação, amar é arte. Muito amor, gente. Até logo.”


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