Como doar seu corpo (literalmente)

Camila Appel

“Cheguei à conclusão de que pouco importa se há continuidade ou não após a morte. O corpo morto não passará jamais por outro processo senão o de desfazer-se até virar pó. Se é assim, temos que pensar seriamente no problema das necrópoles  com um olhar mais científico e começar a buscar as alternativas como a cremação e, a mais indicada, a doação de corpos. Percebi que esse é o destino mais inteligente que podemos fazer com o corpo humano.

Eu decidi doar o meu corpo para estudos por achar uma vergonha viver num país com tanto potencial e termos uma ciência medíocre, em que uma faculdade que busca corpos para estudos enfrente tanto descaso quanto ao tema. Não, não estou engrossando o coro dos descontentes com o poder público, que não ajuda também nesse caso. Estou apontando para o verdadeiro problema – a sociedade brasileira e os aspectos de sua cultura a serem melhorados. Não é possível que em pleno séc. 21 ainda tenha gente que acha que precisa ser enterrada porque um dia algum fenômeno fantasioso vá ocorrer e os mortos voltarão a andar. A descoberta das múmias egípcias mostra que evoluímos pouco ou nada nesse quesito cultural.

Ao passo que um corpo humano, ainda mais se bem preservado e documentado, pode ajudar gerações de estudantes a impedirem ou retardarem mortes e a aumentarem a qualidade de vida da população. Talvez fosse esse o pensamento que os antigos tivessem ao visarem a preservação de corpos, embora não soubessem traduzir esta intenção num método claro como hoje propõe a ciência”.

– Carta de Rafael Roldan ao blog Morte sem Tabu

 Na cidade de São Paulo, há um programa oficial de doação voluntária de corpos para estudos de anatomia, o do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que habilita os estudantes da área da saúde da USP em anatomia humana.

Desenvolvido em 2009 por Thelma Marsola, o programa recebe corpos daqueles que preencheram, em vida, os formulários para sua doação. Mesmo com a solicitação formalizada, a família deve notificar o falecimento. Se não houver esse aviso familiar, a doação não ocorrerá. Isso significa que a doação depende desse consentimento.

O programa surgiu em consequência da falta de corpos para estudos. Antigamente, esses corpos eram de indigentes – corpos não reclamados. Com o tempo, eles deixaram de ser utilizados, trazendo a necessidade de um programa de doação voluntária. Isso ocorreu devido à “melhoria da qualidade de vida decorrente das tecnologias atuais, bem como, o caráter ético”, segundo a tese de doutorado de Thelma – base para o desenvolvimento do programa. Thelma complementa: “as famílias abandonam menos seus parentes e hoje há assistentes sociais acompanhando moradores de rua”.

Recebem sete cadáveres por ano, em média. “É muito pouco. O ideal seria termos um cadáver para cada seis alunos. Se num curso de medicina há 180 alunos, deveríamos ter 30 cadáveres, sem contar as outras áreas da saúde da faculdade”, argumenta Thelma.

Ela considera o Brasil um país com índices de doações muito baixos, se comparado aos de Estados Unidos e China, por exemplo. Um dos fatores seria a pouca divulgação do tema aqui. “As pessoas nem sabem que isso é possível. Dependemos da mídia para divulgar, mas ninguém quer pensar sobre a morte”.

Seguem perguntas e respostas sobre o processo de doação, com base numa conversa com a Thelma. E veja posts relacionados a esse tema no final do post.

Quem pode doar?

Não há contraindicações. Mas para menores de 18 anos, é necessário a autorização de um responsável. Não há algum tipo de doença ou idade que impeça a doação. Além de corpos, pode-se doar membros, como nos casos de amputação, por exemplo.

Há custos envolvidos?

Somente o translado do corpo para quem mora fora da cidade de São Paulo. Para quem mora na cidade, não há custo nenhum. A doação pode ser feita para uma faculdade em sua própria cidade. Contacte-a solicitando informações sobre o processo de doação da mesma.

E remuneração?

Nenhuma. Por lei, não se pode receber remuneração financeira. A lei referente é: Artigo 14 da lei 10.406 – lei de 2002 do Código Civil Brasileiro. “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”.

O que é feito com o corpo?

Ele será estudado por alunos das áreas de saúde da USP. Ele poderá ser cortado, mas não desmembrado.

O corpo é dissecado para mostrar aos estudantes sua composição, formas, texturas, a localização de cada tecido, órgãos, e os tamanhos e as variações entre corpos.

Um corpo chega a ser estudando por 50 a 70 anos. E os familiares não terão mais acesso a ele.

E depois de estudado?

Depois, a faculdade organizará seu enterro. Nunca foi feito um enterro porque todos os cadáveres recebidos ainda estão em estudo.

Qual é a importância da doação?

O site da Sociedade Brasileira de Anatomia coloca como benefícios da doação:

  • Contribuir para a melhor formação técnica dos profissionais da saúde;
  • Colaborar para a formação humanista dos estudantes;
  • Permitir o desenvolvimento de novas técnicas cirúrgicas que possam ser mais eficientes e menos invasivas;
  • Possibilitar o estudo e o conhecimento das variações anatômicas existentes nos indivíduos;
  • Ajudar no desenvolvimento das pesquisas médico-científicas.

É possível doar órgãos e o corpo para estudos?

Sim. Um não impede o outro. A doação de órgãos ocorre primeiro.

Pode-se fazer velório e mesmo assim doar o corpo?

Sim. O corpo pode ser direcionado à doação após o velório. Todos os gastos com o velório ficam por conta da família.

Posso optar por doar agora e depois mudar de ideia?

Pode, porque o processo de doação só será finalizado se a família informar que a pessoa morreu.

Os alunos terão acesso ao meu nome?

No preenchimento dos documentos, você optará por ser anônimo ou não. Mas a maioria dos doadores preferem não ser anônimos, porque para eles é um orgulho ser um doador.

Há respeito pelo corpo?

Na primeira aula, fala-se muito sobre a importância do cadáver, para que ele serve, o respeito que ele precisa… E não se permite brincadeiras, fotos ou apelidos. (veja o post “oração ao cadáver desconhecido”).

 Qual é perfil do doador?

A maioria é idoso. Recebemos o corpo de uma recém nascida agora, mas é incomum.

Como será no futuro? A tecnologia 3D poderá substituir as doações?

O cadáver é insubstituível. A tecnologia pode ajudar, mas não substituir. Mesmo as universidades de ponta, como Harvard, não deixam de usar cadáveres.

Legal, quero doar. Como fazer?

Acesse os documentos nesse link, que devem ser assinados com firma reconhecida. Você receberá uma carteirinha de doador.

Não esqueça de avisar seus familiares. Sem o contato deles com o departamento de doações, o processo não será finalizado.

Atualização: para doar para outra universidade, por favor entrar em contato com a sua universidade de preferência, pois cada uma dispõe de um procedimento próprio. A Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre também organiza um programa de doação em vida. Acesse esse link para maiores informações. O mesmo ocorre com a Universidade Federal de Minas Gerais – acesse esse link. O site da Sociedade Brasileira de Anatomia também disponibiliza informações importantes sobre o processo de doação – acesse aqui.

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Leonardo da Vinci – “O Homem Vitruviano” (1485). Os desenhos de Leonardo da Vinci reproduzindo a anatomia humana podem ser vistos no livro “Os Cadernos Anatômicos de Leonardo da Vinci” (Ateliê editorial, 2012)