Mortes emblemáticas em 2016
Como é difícil analisar de forma objetiva quais foram as mortes que tiveram mais destaque no ano, vou aqui assumir uma subjetividade e falar sobre as que foram, para mim, emblemáticas.
Considero emblemáticas porque mobilizam a sociedade, geram textões no Facebook, alimentam colunistas e mesas de bar. São usadas para questionar a existência do mundo e viram iscas para uma reflexão própria, num egocentrismo natural da nossa espécie.
Como diria Fininho, o coveiro-filósofo que já entrevistei aqui no blog e na TV Folha: no velório, choramos para nós mesmos e não por quem morreu. Pepe, o fundador do cemitério vertical de Santos (o mais alto do mundo), que também entrevistei aqui, define o luto de forma parecida: o luto é a perda de parte de nossa audiência. Choramos por perder aqueles que nos testemunham.
As mortes de repercussão nacional também são voltadas para nós. Choramos porque temos medo dessa coisa chamada morte que teima em acontecer em momentos muito inconvenientes.
Como a de Domingos Montagner. Uma morte que representa a insegurança da vida e a irracionalidade que existe em seu fim. Morreu um homem forte, no auge da carreira, com três filhos pequenos. Ele estava em um momento ingênuo como é um banho de rio. A surpresa do acontecimento incitou declarações de amor e de “vamos viver a vida porque ela pode acabar a qualquer momento”.
A tragédia dos Chapecoenses e jornalistas também simboliza essa visão de que cada dia deve ser vivido como o último e que não podemos deixar nada para amanhã. Mas trouxe uma revolta pela irresponsabilidade daquele voo que não poderia ter saído do chão. Há culpados bem definidos que deverão pagar pelo desdém, pela inércia em achar que algo ruim não vai acontecer simplesmente porque eles acham que não. Fecham os olhos para a precaução. Essa irresponsabilidade brutal aparece todo ano. Em 2015, foi Mariana.
No dia do Natal, veio a morte do ambulante de 54 anos espancado por defender duas travestis na estação de metrô em São Paulo. Essa morte espanta e justifica argumentos sobre a imaturidade da nossa sociedade, a hipocrisia e a intolerância.
A morte de ídolos como David Bowie, Prince e George Michael simbolizam o fim de uma fase de nossas vidas. Morre a lembrança de umas férias na praia ouvindo tal CD, uma viagem de carro cantando bem alto, um namoro que foi marcado a cada som. Esses ídolos parecem que morrem levando uma parte de nós. Choramos por essa despedida, por estarmos, enfim, envelhecendo. Quando Carrie Fisher morreu, seguida pela morte da mãe ainda por cima, uma tristeza me abalou porque cresci achando que a Princesa Leia era imortal. Não era.
Quando Elke Maravilha se foi, eu senti pena. Não dela, mas de nós. Em seguirmos sem o encantamento provocado por essa referência do que é ser diferente e peitar essa diferença.
Ainda há as mortes silenciadas. Os suicídios, a morte do isolamento do hospital, com dor, na UTI, e sem opções, sem poder escolher a melhor forma de morrer.
Eu perdi uma grande amiga, a dramaturga Consuelo de Castro. Até agora teimo em olhar para nosso histórico de conversas no WhatsApp e me questionar: Onde é que você foi parar? O que será acontece quando morremos? É até triste o fato de eu achar que não acontece nada. Segundo a minha perspectiva, sumimos.
A morte de crianças em Aleppo machucam lá no fundo. Principalmente em quem tem filhos pequenos. Dá vontade de abraçar uma criança daquelas, alimentar, vestir e dormir de conchinha. Encher de beijo e dizer que vai ficar tudo bem. Como se ela simbolizasse a sobrevivência da nossa espécie. Ver uma criança nesse estado é dar de cara com o fim do oxigênio. O impulso é ninar essa última flor no universo, guardar sua semente com carinho e esperança de que não será para sempre assim.
É uma pena que qualquer retrospectiva que analise décadas ao invés de anos, verá um ciclo se repetindo. Atrocidades, genocídios, crimes de intolerância, crimes passionais, mortes causadas por fenômenos da natureza e pela irresponsabilidade humana. Mas também dizer que sempre foi assim e sempre será não é nada animador. Melhor imaginar que o fim de algo simboliza a possibilidade do início de outro.
Afinal, hoje é o último dia do ano, a morte de um página do nosso calendário gregoriano e o começo da próxima. Novos ídolos nascerão, novos líderes tentarão fazer um mundo melhor, novos artistas questionarão o status quo e nos darão motivos para acordar cantando, para nos sentirmos inclusos, parte integrante de um universo que é maluco, mas que é nosso. Esse que fatia o ano em meses e diz que de um minuto para o outro tudo deverá ser diferente por causa de um número, de um porre, e de uma boa dose de euforia.
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